Certa vez, ao conceder uma entrevista a uma emissora nacional, perguntou-me o âncora do programa jornalístico se não era uma “jabuticaba” a tese que eu defendera na tribuna do STF, na qualidade de representante do Movimento de Combate à Corrupção (MCCE). Referia-se ele ao julgamento da ADI 4650, ajuizada pela OAB para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as contribuições de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais. Antes de responder sobre a importância de se impedir o financiamento (investimento) privado das eleições, perguntei a ele a razão do preconceito contra a jabuticaba, uma das especiais frutas nativas da Mata Atlântica. Disse-lhe que eu adorava jabuticaba, mas se ele gostava de peras, morangos, maçãs, pêssegos e outras frutas estrangeiras eu respeitaria. Mas que não concordava com a premissa de que as coisas do Brasil não mereciam ser respeitadas.
O grave é que esse desprezo pela jabuticaba (leia-se: coisas do Brasil) tem se espalhado como um mantra impressionante. Escuto-o a todo tempo ou lugar. Até mesmo no onisciente STF a fruta brasileira já constou como elemento depreciativo de um texto constitucional, dizendo-se que deveria ele ser reinterpretado por ser fruto do “pecado original” cometido pelo constituinte tupiniquim. Tenho a impressão de que, caso pudessem, eles receitariam o “jejum de jabuticaba” como caminho ideal para a conquista do nirvana brasileiro. Ou, recitando o mantra com outras palavras, diriam eles que o Brasil somente melhoraria se copiasse o modelo trilhado pelo nobre padrão europeu ou pelo “arrojado” sistema democrático estadunidense.
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Aconselho aos amantes das frutas importadas que leiam o livro: Pilhagem. Quando o Estado de Direito é Ilegal. Nele, o italiano Ugo Mattei, professor de direito internacional nas universidades da Califórnia, de Hastings e de Turim, em coautoria com a estadunidense Laura Nader, professora de antropologia da Universidade da Califórnia, explicam as consequências deste “encantamento” nada inocente. O livro, escrito ainda na era do general George W. Bush, explica o desmonte das políticas públicas, a privatização das riquezas nacionais, a coisificação da pessoa humana, os retrocessos sociais, o uso dos meios de comunicação, o ativismo judicial e, enfim, o “Reinado do Mercado”. Qualquer coincidência com o Brasil não é, portanto, mera coincidência. Eis o que alertam:
“Os países periféricos são, assim, intelectualmente humilhados, criando-se as condições psicológicas para a aceitação da hegemonia estrangeira.”
“Os subordinados, ou pelo menos parte significativa deles, devem ser convencidos da natureza superior da ordem e da civilização dominante em comparação com a deles. Sem este componente ideológico, a opressão seria um exercício mais dispendioso.”
“A ideia da hegemonia revela, por parte do sistema jurídico dominador, de ser “admirado” pela periferia, obtendo, assim, mero consenso junto a nação dominada.”
“Para conseguirem esse resultado final, uma espécie de paraíso neoliberal em que poderosos agentes de mercado podem transformar todas as pessoas do mundo em consumidores e todo trabalhador não especializado em bem de consumo, os programas de desenvolvimento indicam cinco áreas e imperativos principais de reforma: 1- Permitir que os mercados livres determinem os preços. 2 – Diminuir o controle estatal dos preços. 3 – Transferir os recursos mantidos pelo Estado para o setor privado. 4 – Reduzir o orçamento do Estado ao máximo possível. 5 – Reformar as instituições estatais (tribunais e burocracia) a fim de facilitar o setor privado (boa governança e Estado de Direito).
É evidente que os “adoradores das frutas estrangeiras”, em providencial amnésia argumentativa, não apontam que fora o “modelo europeu de democracia” quem produzira Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Dollfuss, Ceauȿescu e vários sistemas autoritários, genocidas, racistas e separatistas desprezados pela História. Também esquecem que provocou duas grandes guerras mundiais, usufruiu-se do tráfico de pessoas humanas e ainda elege discursos fundados nos mesmos crimes do passado. Não citam, ainda, que a “liberdade democrática estadunidense” organizou, apoiou, ensinou, torturou e lucrou com Pinochet, Saddam Hussein, Stroessner, Fujimori, Idi Amin Dada, Videla, Fulgêncio, Papa Doc, Noriega Castello, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo e tantos outros ditadores. Não lembram que os EUA não aceitam a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, mais recentemente, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, substituindo-a pela justiça de Guantánamo, Abu Ghraib e do Patriot Act. Não relembram, certamente, a lição já antecipada por Rui Barbosa, quando, resumidamente, ensinou que A tirania muda de amantes.
Evidentemente não rejeito ou desgosto de outras frutas, pessoas, culturas ou histórias. Gosto também dos sabores delas, alimentando-me, diariamente, dos prazeres, das informações e das coisas que derivam de suas exclusivas características. Até porque os sabores e os saberes são plurais, nenhum melhor ou pior do que o outro, apenas diferentes. Erros e acertos integram todas as páginas escritas no evoluir da humanidade. Eles acompanham todos os povos, todas as raças, todos os espaços do tempo. Mas, confesso, não posso aceitar o argumento de inferioridade expresso na acusação de que as coisas do Brasil são desprezíveis e, em razão disso, elas são piores do que os acontecimentos forasteiros.
Na verdade, o que abomino é a Síndrome de Jabuticaba, a doença social em que a vítima nacional aceita e subordina a validade de seu pensamento à aprovação de seu verdugo internacional. Não concordo, portanto, que se reinterprete a Carta de Pero Vaz de Caminha, retirando a jabuticaba do rol das frutas que “em se plantando tudo dá”. Afinal, como alertado pelos professores Ugo Mattei e Laura Nader, o efeito colateral da Síndrome de Jabuticaba é devastador para o Brasil, gostando-se ou não da fruta brasileira. E, com não abro mão da minha jabuticaba, seguirei defendendo-a nas tribunas da vida.