É impressionante. Na semana em que subiu a temperatura na CPMI que investiga as ligações entre Carlos Cachoeira, a Delta e o mundo político, a Câmara dos Deputados aprova, de forma açodada e contraditória, a extensão do Regime Diferenciado de Contratação (RDC) às obras do PAC.
Ora, a Delta é exatamente a maior empreiteira do PAC e foco das investigações da CPMI. Como afrouxar os mecanismos e o rigor nas contratações do setor público?
Num momento em que determinados líderes insensatos procuram jogar “as massas” contra os pilares da democracia e suas instituições (Supremo, liberdade de imprensa, Procuradoria Geral da República etc.), o Congresso deveria lutar, com unhas e dentes, pelo seu fortalecimento e pelo exercício pleno de suas prerrogativas. A Lei nº 8.666 precisa, sim, ser mudada. Mas dada a importância do assunto, as alterações deveriam ser objeto de um projeto de lei, a ser exaustivamente debatido. Reafirmando um hábito autoritário, o governo federal pegou carona na MP nº 559, que versava unicamente sobre o setor elétrico. Eram apenas três artigos. O parecer do relator Pedro Uczai (PT-SC), entregue uma semana antes da votação, com feriado na quinta, resultou em Projeto de Lei de Conversão com 36 artigos, versando sobre ensino superior, doação internacional de alimentos, planos de assistência à saúde, seguridade do servidor, portos, programa habitacional, tributos de advogados e, o contrabando maior, o famoso RDC. Em resumo, a MP virou uma salada de frutas, um enorme Frankenstein. E a Câmara dos Deputados, renunciando às suas prerrogativas, aprovou por 222 votos contra 150, após displicente e superficial discussão.
E no mérito e no conteúdo? É evidente que temos que mudar a 8.666/93, que tem seus problemas, marcados pelo ambiente pós-afastamento de Collor, mas foi democrática e profundamente discutida. O RDC tem méritos: a inversão das fases de habilitação e julgamento, a combinação de disputa aberta ou fechada, a possibilidade de postergar a publicação do orçamento estimulando a vigência de preços de mercado. Mas, no Brasil dos nossos dias, contratar sem projeto básico e executivo, licitar sem uma especificação límpida e transparente, sem balizamento claro para a precificação e competição, é no mínimo uma temeridade.
A base da boa contratação é um bom projeto. Nunca esqueço o que me disse o gerente de projetos do Bird, o francês Jacques Cellier, quando negociávamos um empréstimo para estradas: “Na França, gastamos cinco anos no projeto e um ano na obra; no Brasil, vocês gastam um ano no projeto e cinco na obra”. E dá-lhe aditivos, realinhamento de contratos, revisão de “projeto”, etc.
Dizem que o Brasil é o país da piada pronta. Espero que a forma descuidada com que a Câmara estendeu o RDC para as obras do PAC não o deixem conhecido como “o Regime da Delta e do Cachoeira”. E aí, não vale chorar o leite derramado com novas CPIs e escândalos futuros.