A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Drogas foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no dia 13. O projeto representa um embate direto com o Supremo Tribunal Federal (STF), que julga a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal e discute a definição de uma quantidade que diferencie usuários de traficantes. A votação foi simbólica, com o registro dos votos contrários dos senadores do PT e do senador Marcelo Castro (MDB-PI)” (fonte: oglobo.globo.com).
A proposição aprovada afirma que “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre o traficante e o usuário pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência” (fonte: oglobo.globo.com).
A referida decisão da CCJ do Senado Federal e, depois, uma eventual deliberação do próprio Congresso Nacional suscita várias discussões importantes, entre elas: a) os limites de atuação do Poder Constituinte Derivado (Câmara dos Deputados e Senado Federal) e b) a melhor (ou menos pior) política pública de combate às drogas.
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Inúmeras lideranças de um Congresso profundamente conservador (não seria exagero a qualificação de reacionário) perceberam que decisões no plano legal podem ser superadas pelo reconhecimento de inconstitucionalidade realizado pelo STF, no seu papel de guardião da Constituição. Assim, a “solução” para não paralisar a marcha do atraso seria a aprovação de PECs (Propostas de Emenda à Constituição). Por essa via, o próprio parâmetro de controle de constitucionalidade seria alterado.
Ocorre que a PEC é uma manifestação do Poder Constituinte Derivado (o Congresso Nacional) e o Poder Constituinte Originário (autor da Constituição) limitou o raio de ação do primeiro. Não é possível, no sentido de juridicamente válido, aprovar mudanças no Texto Maior que afrontem as chamadas “cláusulas pétreas”, inscritas no art. 60, parágrafo quarto, da Constituição.
Com efeito, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a) a forma federativa de Estado; b) o voto direto, secreto, universal e periódico; c) a separação dos Poderes e d) os direitos e garantias individuais.
PublicidadeA instância competente para avaliar e afastar da ordem jurídica uma emenda violadora do art. 60, parágrafo quarto, da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. O STF já declarou a inconstitucionalidade de emendas à Constituição. Aparentemente, a primeira decisão nessa linha ocorreu em relação à Emenda Constitucional n. 3, de 1993, que previu a criação do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF) sem observância da anterioridade e das imunidades tributárias (ADIn n. 939).
Portanto, a aprovação de uma PEC não é a última palavra sobre a temática decidida. Restará saber se não houve, mesmo para a emenda constitucional, um vício de procedimento (quórum e número de votações) ou de conteúdo que impede sua inserção na ordem jurídica brasileira. Esse crivo será realizado, se devidamente provocado, pelo STF. A chamada “PEC das Drogas” não escapa desse figurino desenhado pelo Constituinte Originário.
No caso específico da “PEC das Drogas” é preciso confrontar seus termos com os insuperáveis e inafastáveis direitos individuais, mais especificamente o direito à liberdade individual inscrito no art. 5o, caput, da Constituição. Afinal, existe uma espaço de escolha e ação do indivíduo que não pode ser afetado ou “invadido” por outros indivíduos, pela sociedade ou pelo Estado.
Acredito, e essa é a minha interpretação da extensão do direito à liberdade individual em uma Constituição progressista e fundada na dignidade da pessoa humana, que o cidadão, desde que não coloque em risco a integridade e a vida de terceiros, pode fazer uso de substâncias que alteram o estado de consciência. Aliás, essa é uma prática recorrente em todas as civilizações humanas desde os seus primórdios. O altíssimo consumo de bebidas alcoólicas, mesmo no Brasil atual, é a demonstração cabal dessa minha última consideração.
Uma eventual declaração de inconstitucionalidade substancial de uma emenda à Constituição pelo STF flagra o equívoco do discurso fácil de que o Poder Judiciário, por seu órgão de cúpula, aproveita-se de um espaço deixado pela inércia do Congresso Nacional e termina por legislar de forma indevida (o chamado “ativismo judicial”). Na hipótese cogitada (e já realizada pelo STF) não existe uma “decisão normativa” do Judiciário. A verdadeira razão para a atuação mais destacada do Poder Judiciário nos últimos tempos decorre de uma profunda mudança do paradigma de compreensão do funcionamento da ordem jurídica. As Constituições ganharam uma supremacia material ou axiológica antes inexistente. A principal consequência prática dessa transformação revolucionária no campo jurídico consiste justamente na possibilidade, e necessidade, de aplicação direta da Constituição, notadamente seus valores e princípios, independentemente de intermediação legislativa (de uma regra específica posta na legislação infraconstitucional).
Nesse novo contexto jurídico desenvolve-se o chamado “papel contramajoritário” do Supremo Tribunal Federal. Essa perspectiva é essencial para a preservação do Estado Democrático de Direito e para evitar que os direitos individuais e as liberdades fundamentais sejam prejudicados pela vontade de uma maioria ocasionalmente formada. Afinal, não é incomum que interesses mesquinhos, equivocados e reacionários sejam mobilizados, num contexto pontual, contra conquistas civilizatórias que consumiram décadas ou séculos de intensa luta social. Assim, as maiorias circunstanciais, representadas ou não no Parlamento, não podem afrontar a dignidade da pessoa humana materializada no exercício efetivo de um conjunto básico de direitos fundamentais. Uma pretensão dessa natureza esbarra na supremacia da Constituição guardada, por expressa definição do Poder Constituinte Originário, sem desvios ou excessos, pelo Supremo Tribunal Federal.
Portanto, o cenário atual não se apresenta como uma simples disputa por espaços de poder (entre o Legislativo e o Judiciário). O que está em jogo é o progresso civilizatório a partir da afirmação, ou rejeição, de seus valores e princípios mais nobres.
Adentramos, nesse passo, no delicado tema do combate às drogas nas sociedades contemporâneas. Infelizmente, essa temática está dominada por concepções moralistas e autoritárias. Aposta-se na pura e simples proibição e na consequente “guerra às drogas” sem um olhar mais crítico e criterioso. A proibição gera uma série de consequências delicadas, tais como: a) o desejo/curiosidade pelo proibido; b) corrupção policial; c) criação de poderosas organizações criminosas e d) aumento significativo da criminalidade. Ademais, retirar traficantes operacionais de circulação só substitui esses agentes ao longo do tempo. A “boca de fumo” deixa de ser de A e passa a ser de B, depois C e assim por diante. Os verdadeiros donos e fomentadores do tráfico e do consumo continuam transitando nas festas da alta sociedade e nos reservados espaços da política.
No atual estádio de minhas reflexões sobre o assunto, acredito que a liberação do consumo de drogas é o melhor, ou menos pior, caminho para combater seu uso generalizado. Os perversos efeitos da proibição, como destacado, seriam eliminados ou imensamente minimizados. Uma forte campanha midiática, com a participação ativa de importantes segmentos sociais, mostraria a repulsa e os malefícios relacionados com a utilização das drogas. O caso do tabaco (cigarro) é emblemático. Apesar de “liberado”, um forte movimento de rejeição social reduziu paulatina e drasticamente o consumo.
Não sou usuário de nenhuma droga que afeta o estado de consciência (nem álcool). Alimento a esperança de que ninguém seja dependente de nenhuma dessas substâncias. Desejo que seus usos sejam, no máximo, instrumentos para o melhor convívio social. Acredito firmemente que esse quadro não será alcançado por intermédio do simplismo moralista e autoritário da proibição e da “guerra às drogas”. Aliás, uma hipócrita guerra às drogas. Afinal, o álcool é vendido e consumido, em larga escala, em qualquer esquina, com enormes e perversas consequências individuais e sociais.
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