Emanuel e Oxalá estavam preocupados com Jaci. Não conseguiam reunir-se com a amiga há aproximadamente um mês. Estavam com saudade dos encontros e das conversas semanais em que trocavam experiências, saberes e compreensões sobre a importância do espalhar o amor incondicional em uma quadra do tempo em que o ódio ganhava chancela oficial. A ausência do encontro semanal era bastante sentido pelos dois amigos e já comentado em vários lugares e por várias divindades que frequentavam as rodadas de conversas livres. Oxalá não conseguia disfarçar uma certa ansiedade pela suspensão inesperada dos colóquios, pois era a sua vez de contar a narrativa que escolhera sob a inspiração dos Orixás.
Mas eles sabiam que Jaci estava iluminando o esperançar de seu povo na luta que travava no terreno de um tribunal criado e composto exclusivamente por não-indígenas. E não é sem razão o esperançar de Jaci e dos povos indígenas que acampam em Brasília a espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Desde que os portugueses aportaram em sua Pindorama, no dia 21 de abril de 1500, Jaci testemunhava a possibilidade de se reconhecer a posse que o seu povo tradicionalmente ocupa no Brasil. Era a última e derradeira chance do Brasil proibir o genocídio indígena, o esbulho das terras tradicionalmente ocupadas, a aniquilação das culturas originárias, o desaparecimentos das primeiras línguas faladas e a proteção das florestas. Enquanto conversavam sobre as injustiças historicamente praticadas contra os povos indígenas, não perceberam que Jaci havia entrado na sala.
– Tîa nde pytuna! – saudou Jaci, iluminando a noite que acabava de iniciar a sua jornada. – Estavam com saudades do meu brilho?
– Sempre estamos, Oshupá! – respondeu, animado, Oxalá – Mas estávamos aqui comentando sobre a importância do julgamento do STF para o futuro da humanidade.
– Então estou perdoada por não termos nos encontrado nestas últimas semanas? – acarinhou-se Jaci.
– Não é o caso de perdoar, mas o de agradecer a você por nos iluminar em sua perseverança. O futuro da Nossa Casa Comum depende do tratamento que damos a todos os habitantes e coisas do planeta – concordou Emanuel. – Essa foi a mensagem deixada pelo nosso Francisco durante o Sínodo da Amazônia
– Ixé oro-aûsub, Emanuel! Eu sou muito agradecida à ajuda que vocês estão nos dando – sensibilizou-se Jaci. – Nossos adversários são muito fortes, econômica e politicamente.
– Eles apenas mudam de nome ou de época, mas a ganância é sempre a mesma – concordou Oxalá. – E todos eles apoiando e elegendo políticos que são cúmplices dos mais variados genocídios.
– Eu fico impressionada como as pessoas se revoltam com a destruição de uma estátua como a de Borba Gato, mas são insensíveis à política de aniquilamento dos povos indígenas, das florestas e dos animais – complementou Emanuel. – Não foi isso que ensinamos a eles.
– Não mesmo! – exaltou-se Jaci. – Vocês sabem que não é a falta de saber o que está acontecendo com o nosso povo. Eles sabem muito bem. Denúncias e avisos são externados o tempo todo. Não é preciso ser o seu amigo Tomé que apenas acredita no que os olhos enxergam. Eles sabem. Eles sabem e nada querem fazer.
– Deixe o pobre do Tomé em paz, Jaci! Ele mudou muito nos últimos anos e está super espiritualizado – sorriu Emanuel. – Tem uma obra de arte exposta no salão principal do Supremo que denúncia esses crimes, não é Jaci?
– Eu fiquei chocada com a descoberta – esbravejou Jaci. – Ele retrata com perfeição a cruel história de meu povo, chacinado sem piedade. Aqueles bandeirantes com garras demoníacas, fortemente armados, cercando o meu povo e ameaçando uma mãe que protegia o seu curumim e o que restava da floresta. A cena deveria sensibilizar o mais frio dos corações.
– Eu tenho certeza de que o artista filipino Masanori Uragami pretendia denunciar o que estava acontecendo no Brasil – complementou Oxalá. – Ainda mais quando colocou Brasília e os Poderes da República ao fundo, testemunhando o crime coletivo ali praticado.
– Claro que essa era a intenção, Oxalá! – continuou, exaltada, Jaci. – Você não notou o nome e o ano do mural?
– Bandeira de Ontem e de Hoje, pintado em 1971 – respondeu, rapidamente, Emanuel, não perdendo a oportunidade para exercer a sua onisciência.
– Isso mesmo, Emanuel! – afirmou Jaci. – O artista avisou ao Poder Judiciário que as bandeiras do passado continuavam ativas no hoje. Mais ainda, que no ano de 1971 nosso povo era exibido como animais presos em paus-de-arara em paradas militares.
– Espero ser esta uma verdade profética – suspirou Oxalá. – E que o STF interprete o quadro como uma advertência de um passado sombrio, proibido no hoje e nunca mais repetido no futuro.
– Assim espero, mas, confesso estou muito preocupada – confessou Jaci. – Com os dois votos já proferidos, o julgamento está empatado e não tem data para acabar.
– Também assim desejo, não podemos permitir que a “bandeirante” tese do marco temporal seja vencedora – apoiou Oxalá. – Nossas irmãs e irmãos quilombolas têm interesse na aplicação da constitucional posse tradicional como razão de existir.
– Sei disso, meu Orixá! – animou-se Jaci. – Daí continuarmos lutando em Brasília e em todo lugar que a nossa ancestralidade aconselhar. E que a suprema profecia de que teremos de volta a nossa Pindorama se concretize logo.
– Não ao marco temporal! – bradaram, conjuntamente, Emanuel e Oxalá!
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