Finalmente tramita na Câmara um projeto que altera o Estatuto dos Militares definindo o real papel das Forças Armadas de garantir a democracia e os direitos humanos. Nada de poder moderador, nada de instituição acima dos três poderes, nada de deixar brechas abertas ao golpismo, como, por exemplo, a interpretação distorcida do artigo 142 da Constituição que deu combustível aos golpistas que depredaram os edifícios da Praça dos Três Poderes acreditando que seria possível às Forças Armadas botar abaixo o arcabouço democrático do país e anular uma eleição legítima para manter Bolsonaro no poder.
Ainda bem. Mas há outros problemas que ainda aguardam um esforço do Congresso para mudar a situação. Por exemplo: ninguém nega a importância do fim do foro privilegiado de Bolsonaro, com o que, teoricamente, ele passa a ser um cidadão comum, e, portanto, com muito mais chances de ser alcançado pela justiça ao retornar ao Brasil. Mas, será mesmo? Há controvérsias, muitas controvérsias. A questão não é tão simples assim. Enquanto vários analistas são contrários à existência do “foro por prerrogativa de função”, por considerá-lo um privilégio (tanto que ficou conhecido como “foro privilegiado”), há os que o consideram um instituto que, pelo contrário, complica a vida dos acobertados por ele. E a razão está na própria instituição judiciária. O jurista Claudio Abramo, da Transparência Brasil, por exemplo, argumenta que a inexistência do foro privilegiado abriria a possibilidade de recurso a outras instâncias, o que tornaria mais difíceis as condenações pois, quanto mais elevada a corte, maior a sua eficiência jurídica, ou seja, mais célere é a aplicação da justiça. Já o professor Marcelo Figueiredo, ex-diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP, defende o fim do instituto, desde que, concomitantemente, se garanta execução mais rápida das sentenças de primeiro grau. No mesmo sentido, o advogado David Rechuilski, especialista em Direito Penal, acrescenta que a extinção do foro privilegiado poderia aumentar a sensação de impunidade, diante de uma demora maior na tramitação e finalização dos processos. Tudo isso, é claro, sem falar na possibilidade de pressões de natureza tanto política quanto econômica nos julgamentos de primeiro grau.
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O foro é ou não é privilégio?
A controvérsia cresce quando se ouve de um ministro do Supremo, no caso o ministro Gilmar Mendes, a afirmação, publicada em artigo na Folha de São Paulo, de que o foro não é privilégio, porque pode é piorar a situação do réu. De fato, os cidadãos comuns têm três ou quatro instâncias de recurso, enquanto os “protegidos” pelo foro especial não podem recorrer a ninguém, dado que o STF é a última instância recursal.
O problema é que, na situação atual, diante da verdadeira avalanche de processos que diariamente desaguam nos guichês do STF, raramente sobra tempo para a apreciação de processos que envolvem autoridades acobertadas pelo foro especial que, na prática, terminam se beneficiando dessa impossibilidade fática de recebimento, instrução e julgamento da causa em que figuram como acusadas. São inocentados…pelo tempo.
Passa da hora de o Congresso Nacional enfrentar o problema de forma decisiva, como está fazendo em relação ao papel das Forças Armadas, pois o que não faltam são críticas à eficiência do foro por prerrogativa de função, sempre acusado de ser um privilégio que afronta diretamente o artigo 5º da Constituição Federal. Segundo ele, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Seria simples, mas definitivamente não é porque, se o foro privilegiado existe para proteger a atividade do cargo público, ou seja, a “coisa pública”, ele historicamente tem servido mesmo é para assegurar a impunidade do ocupante de cargo público de relevo. E não são poucos. Estimativas apontam que, neste momento, no Brasil, existem 55 mil pessoas no gozo das prerrogativas do foro especial.
Outros privilégios
A se considerar o foro especial como privilégio, é igualmente necessário considerar também como privilégio o instituto da aposentadoria compulsória dos juízes apanhados no cometimento de falhas graves. Já houve várias tentativas de modificação desse instituto. Um deles, de 2020, simplesmente extingue a possibilidade de magistrados serem compulsoriamente aposentados com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço após terem cometido falhas graves. Inclusive “por negligência no cumprimento dos deveres da função; se adotar procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro; ou ainda se apresentar capacidade de trabalho incompatível com o bom desempenho das atividades do Poder Judiciário”.
PublicidadePara o deputado José Nelto (PP-GO), autor de um projeto que extingue a aposentadoria como “punição” ao magistrado apanhado em crime comum ou de responsabilidade, o melhor seria substitui-la pela simples “demissão” ou “exoneração” da função. Segundo ele e os que igualmente apoiam o fim da aposentadoria como punição, a colocação do responsável na inatividade com todos os benefícios em verdade configura é um prêmio ao responsável pelo delito que, sequer, continuará trabalhando, e sim gozando de todas as regalias na condição de “ex-juiz”.
Tal como na questão das “fake news”, sobre as quais até hoje não existe legislação nem sequer um rito sumário para julgamento dos responsáveis pela criação e disseminação de notícias falsas durante os períodos eleitorais, é mais do que necessário o Congresso sair da inércia e enfrentar o desafio de colocar as questões do foro privilegiado e da aposentadoria compulsória dos juízes em debate. Mesmo considerando o fato de que o novo Congresso tem um perfil bem mais conservador do que o anterior, os novos ventos trazidos pelo governo que assumiu permitem acreditar que propostas que encampem esses temas têm grandes chances de chegar a bom termo. Como começa a ser feito em relação ao real papel das Forças Armadas.
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