Para se apagar uma história alguns instrumentos são amplamente nomeados e outros tantos dissimulados. O genocídio, processo sistemático de extermínio de um grupo populacional, foi e segue sendo o guarda-chuva de violências brutais e silenciosas para o extermínio de um povo: tem que calar o corpo, a boca, cortar a comunicação e normalizar a brutalidade. Outro elemento deste caldeirão é inserir muros altos, quase que impermeáveis, para desqualificar as contranarrativas de liberdade. Afinal, são as mentiras de cinco séculos, ainda hoje recontadas, que dão suporte para a perversidade contemporânea – letra morta, às vezes natimorta, apenas a negra.
Resistir e escrever com palavras próprias os caminhos da liberdade foi – e continua sendo – tarefa coletiva. E esses afazeres do tecer e do narrar guardam um tanto da humanidade negada sobre a ação insurgente que é pensar o mundo e descrevê-lo por meio do olhar negro.
Assim, andando em círculos ao redor da árvore do esquecimento, mas no sentido oposto ao determinado pelo colonizador, Wania Sant’Anna promoveu um reencantamento da memória e de nossa história. Foi assim que nos demos as mãos, eu, ela, Dulce Pereira, Kelly Tiburcio, Vanda Machado, Mariana Maiara, Helena Theodoro e Iara Brandão. O que era apenas um convite, se transformou, como em séculos passados, na formação de mais uma irmandade que bem pode servir de exemplo para que outras floresçam. Nasceu aí a coluna Olhares Negros. As mais velhas já diziam: se quer ir longe, siga acompanhada. É proteção e, também, tecnologia ancestral de resistência.
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Aprende-se muito ao longo da vida e construir amizades é um dos mais espetaculares aprendizados. A construção da amizade é também parte do exercício da humanização. Não há disputa, há convergência através da palavra, do espaço e do afeto. Há um ano algumas de nós já se conheciam, eram amigas de longa data, outras se tornaram amigas a partir de então, hoje nós somos um grupo de mulheres negras amigas, confidentes e colunistas do Olhares Negros. Neste convívio, nós nos apoiamos em olhares e visões de mundo e nos arriscamos na tarefa de compartilhar essa jornada com leitores, leitoras e toda a turma do Congresso em Foco. A experiência real é a da liberdade e da pluralidade de pensamento, em cada detalhe. Entre o muito que aprendemos até aqui, a decisão mais acertada foi construir esse espaço de fala com a característica de um espaço coletivo de oito mulheres negras dedicadas à transformação do país a partir de suas ideias e ações, muitas ações.
Desde outubro de 2020 publicamos 46 artigos, pensamos as vírgulas e os sentidos de cada um deles, selecionamos suas fotos na curadoria atenta e clique sensível de Mariana Maiara, também colunista. Sobre as fotos também foram momentos de revisitar os álbuns de família e sentir a emoção do passado que a lembrança nos permite ao olhar pessoas e lugares que marcaram nossas vidas – e toda uma história coletiva por contar. Ter liberdade para escrever é algo muito especial desde sempre, mas especialmente nesses dias de rivalidades, intolerância, negacionismos e violências no plural.
Em Olhares Negros nos propusemos a falar de tudo um pouco, desde a conjuntura às profundezas e sutilezas do racismo no Brasil. Sob a perspectiva da comunidade negra, nossos artigos buscaram tratar questões relacionadas à memória, educação, cultura, religiosidade, espiritualidade, filosofia, história, política, fotografia, culinária, atuação comunitária, economia, direito, meio ambiente, cinema, entre muitos outros. Sim, advogamos a existência de uma perspectiva negra sobre esses assuntos porque as práticas de silenciamento e invisibilidade que se abatem cotidianamente sobre nossas visões de mundo corrompem o pensar, solapam a produção de conhecimento e perpetuam as hierarquias que sustentam o racismo, a discriminação racial e o preconceito. Neste sentido, nominar nossa coluna Olhares Negros não foi uma casualidade, pelo contrário, esse foi um ato deliberado e consciente.
Buscamos, coletiva e incansavelmente, a reflexão. Consideramos que o ato de refletir é um processo de libertação necessário aos corpos e às mentes subalternizados à incidência do racismo, do sexismo, da homofobia e das múltiplas formas de violência, discriminação e tentativas de desumanização. Aliás, a reflexão e a exposição do pensamento e da vivência negra sempre foi um ideal da imprensa negra e dos jornais que buscaram, no passado, “interpretar” e disseminar os anseios da comunidade negra brasileira.