Dia desses vi um homem invisível – um senhor humilde, aparentando cerca de 70 anos. Lá estava ele, com a barriga encostada em um balcão, aguardando atendimento por algum dos inúmeros funcionários que fervilhavam do outro lado.
Os minutos se passavam e nada acontecia – do outro lado do balcão as pessoas passavam de um lugar para o outro, o corpo desviando dos obstáculos da sala e os olhos do que se passava no mundo exterior. À indiferença e desprezo dos que estavam do lado de dentro se opunha, em veemente contraste, a dolorosa ansiedade daquele semelhante nosso que aguardava do lado de fora.
Lembrei-me de uma experiência realizada na Universidade de São Paulo, há alguns anos. Um conhecido personagem do mundo acadêmico vestiu um uniforme de gari e passou a percorrer os movimentados corredores de sua instituição de ensino.
Segue o relato de sua primeira experiência: “atravessei o andar térreo de ponta a ponta. Estava atento, buscando a expressão de surpresa em alguém. Mas nada acontecia. Deixei de esperar perguntas intrigadas, mas ainda seria capaz de responder a algum cumprimento. Nada”.
De forma chocante, professores e colegas com os quais conversara há poucos minutos simplesmente passavam por ele sem perceberem sua presença. Apesar do uniforme espalhafatoso, lá estava mais um homem invisível!
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Esta invisibilidade social, aviso desde logo, pouco tem a ver com as diferenças de poder aquisitivo – muito pelo contrário, ela se alastra em cada favela e bairro nobre, pelos palácios e cortiços. Já incorporou-se aos usos e costumes da humanidade. Faz parte da rotina de ricos e pobres, dos fracos e dos poderosos.
Prova esta afirmação aquela figura do idoso agarrado ao balcão de atendimento – lá estava a pobreza dos dois lados de uma linha divisória na verdade apenas imaginária. Sim, a fortuna não favorecera nem quem atendia nem quem esperava atendimento. Mas que diferença faz um balcão!
Não faz muito tempo divulgaram que aqui no Brasil, a cada mês, morrem 600 crianças por conta de doenças causadas pela falta de um simples esgoto. Cheguei à conclusão de que também elas são invisíveis. Se, em um único mês, tantas crianças tivessem morrido vítimas de algum acidente aéreo, a consciência nacional seria tocada de alto a baixo – e, no entanto, elas morrem todos os meses, entra ano e sai ano, gritando que um avião, assim como um balcão, faz toda a diferença!
Percorramos os corredores da maioria dos hospitais públicos. Visitemos nossas prisões. Lancemos um olhar aos departamentos de atendimento ao público. Enfim, saiamos às ruas com olhos de ver – e lá estará, visível, algum invisível semelhante nosso.
É assim que, contemplando o idoso senhor ainda pendurado lá no balcão, fico a recordar as primeiras palavras do livro “Homem Invisível”, obra prima de Ralph Ellison: “Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os que assombravam Edgar Allan Poe; nem um desses ectoplasmas de filme de Hollywood. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – talvez se possa até dizer que possuo uma mente. Sou invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver. Tal como essas cabeças sem corpo que às vezes são exibidas nos mafuás de circo, estou, por assim dizer, cercado de espelhos de vidro duro e deformante. Quem se aproxima de mim vê apenas o que me cerca, a si mesmo, ou os inventos de sua própria imaginação – na verdade, tudo e qualquer coisa, menos eu”.