“Canta, canta minha gente, deixa a tristeza pra lá
Canta forte, canta alto, que a vida vai melhorar/…”
Esses versos mostram a maneira de ser e pensar de um homem que é só alegria e esperança: Martinho da Vila, nosso griot do Aquilombamento Brasileiro de Letras e Artes Pretas e Originárias, criado neste 31 de julho de 2022 para valorização e registro de nossas letras e artes ,. no espaço do Museu do Amanhã, em nome de nossa ancestralidade. Nesta ocasião foi criado um prêmio da comunidade preta para seus escritores e artistas que levou meu nome nesta primeira edição. Minha gratidão aos curadores e companheiros de jornada por tal distinção é imensa, mas tenho uma gratidão maior por tudo que o amigo Martinho me possibilitou. Escrever para mim é um imenso prazer, mas em 2018 publicar um livro sobre o compositor , cantor, poeta e escritor Martinho José Ferreira, foi muito importante , por conta dele ser aquele que me levou a conhecer Angola, encontrar minha ancestralidade e ver de muito perto as tradições pretas de meu país.
Martinho é só alegria e movimento , tendo tido como sua inspiração primeira Machado de Assis – aquele que veio do Morro do Livramento, na então capital do país. Tendo uma mãe lavadeira, se sentiu como ele, usando as palavras para expressar seus pensamentos e desejos , com muita simplicidade, mas numa elegante linguagem, plena de delicadeza. Em seus livros diversos, inicia as conversas com propriedade e revela bem esse seu poder de encantar próprio dos artistas , mas que transborda em sua literatura.
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As letras de seus sambas trazem na mansidão do tom, histórias de lutas, desenganos, propostas e até receitas, revelando um cronista das mazelas sociais, que sabe o quanto é necessário falar de nossas manifestações culturais pretas e indígenas, além de nossa luta e de outros países para criar filhos, estudar e trabalhar, entendendo como é preciso ser um malandro bom pra inventar, aos setenta e tantos anos, cursar uma faculdade de Relações Internacionais. Pesquisador, muito disciplinado em seu ofício de escrever, nele retrata suas vivências e propostas,ampliando elos entre Brasil , Angola e demais países africanos de língua portuguesa. Entra na lusofonia e reverencia seus ancestrais.
Sua participação política vem da consciência crítica, que percebe que “o gato não merece pau algum” e “o boi da cara preta não assusta negro nenhum”. É um ser que, se fosse um “Cravo” lidaria com a “Rosa”, como se dançasse com uma menina doce e formosa! Sua sensibilidade se revela sempre em seu entorno, fazendo com que até os animais da Fazenda do Pacau em Duas Barras estejam sempre a segui-lo por todos os cantos.
Em meu livro Martinho da Vila, reflexos no espelho, admiro o saber deste poeta popular que representa um território, traduzido em seu nome de artista, cuja visão contempla a nossa história, fazendo o mundo judaico cristão se render ao terreiro das escolas de samba e à sabedoria dos pretos velhos. Assim, ele conta a aventura cotidiana do povo brasileiro, sem o folclore que vendem ao mundo e traz o mundo africano até nós. Valoriza as baianas quituteiras, estabelecendo sempre a grande relação entre saber e sabor no universo do a samba. Mostra as diversas manifestações culturais do país, que revelam a participação das tradições culturais bantas, nagôs e jejes, representantes de países africanos que nos formaram mas que não tivemos oportunidade de ouvir falar em nossas escolas. Martinho nos trouxe os sembas de Angola, valorizou o samba de roda da Nigéria e nos fêz cantar mornas de Cabo Verde. Trouxe ainda em suas Kizombas música preta dos Estados Unidos, da África do Sul e do Congo, Nos deu oportunidade de cantar com a congada do Espírito Santo o famoso Madalena do Jucu.
Com cerca de 19 livros publicados, fez jus ao titulo de Dr. Honoris Causa pelo Departamento de Letras da UFRJ. Como compositor de Escola de Samba, fez sucesso no Brasil e em Angola, sendo reconhecido na França, em Portugal e em muitos outros países europeus como um bamba, pleno de naturalidade, sem artifício e nem careta, de–va–ga–ri–nho, desenhando um mundo de Paz, além de mostrar a sabedoria de nossas raízes africanas e de nossas tradições brasileiras.
Pai se fez, escreveu e cantou a menarca da filha mocinha. Além disso, como democrata na rotina nossa de todo dia, se formou em Relações Internacionais , sabendo que a luta em qualquer Pátria nunca irá vencer sozinha. No decorrer do calendário romano, esse artista virou vovô, pleno de Brasil, de África,.não importa, pois utiliza sua figura pública para fomentar a cultura popular, divulgando as folias de reis, a congada e o jongo. Martinho é energia de vida – axé, que mostra o pertencimento negro e indígena, em sua sabedoria intuitiva, com ginga no pé e poesia na voz.
Neste ano de 2022 teve uma justa homenagem da Unidos de Vila Isabel., por tudo que realizou pela escola e pelo samba. Vivemos momentos lindos como a apresentação do artista saindo da imagem de Obaluaiê, seu orixá de cabeça, cantando e saudando o público da Sapucaí;
Sua preocupação com o sucesso da escola e seu enredo Kizomba em 1988 – primeira vitória da Vila Isabel, foram bem explorados e o entusiasmo dos componentes e de seus amigos presentes demonstraram tal fato. Como o ,desfile de escola de samba é sala de aula ,o de 2022 nos passou alegria de viver e seus elos profundos com suas raízes africanas ,mas também com a família carnal e afetiva. Cabe destacar o entusiasmo da filha Mar’tnália na bateria, a presença de Alegria, Juju e Maira na ala dos amigos e a chegada de Martinho , saindo do início do desfile num carro para se incorporar ao chão da Sapucaí abraçando os amigos, tudo registrado no documentário que está sendo feito pelos filhos Martinho Antonio , Preto e Analimar.
Martinho nos prova a relevância do nosso Aquilombamento Literário por saber que nosso ancestrais sempre cantaram para trabalhar, rezar ou se divertir, acreditando sempre que cantando a vida vai melhorar , possibilitando a transformação de nosso país num espaço democrático, onde todos se respeitam e se encontram apesar da diversidade de origens e vivências.
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