Nesses momentos difíceis em que vivemos relembro encontros marcantes em solo africano. Nunca me esqueço do desconforto que senti em Dakar, como representante do Ministério da Educação e Cultura no Acordo Cultural Brasil-Senegal, realizado com os doutores da Universidade Nacional de Dakar, quando todos se apresentaram indicando suas tribos. Quando perguntaram a minha fiquei sem ação e então me disseram que todos temos uma relação profunda com o espaço em que nascemos e vivemos. Imediatamente achei a minha tribo: carioca, tijucana.
Hoje, vendo as notícias sobre o município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, retorno ao conceito de corporeidade e espacialidade que nos dá a lógica do lugar. Como afirma o meu irmão de fé Muniz Sodré, é preciso valorizar a aproximação do outro, já que a corporeidade nos ajuda a pensar. Em nossa tradição negro-africana o corpo é controlado pelo espírito e o pensamento atravessa o corpo dando as categorias que formam o terreiro: espaço, corporeidade, educação iniciática, axé do outro.
Numa reunião para a participação na Feira Literária do Rio de Janeiro, no Riocentro, em 2019, conheci um jovem negro ativista social, que me pediu uma entrevista e participação na Feira Literária de São Gonçalo (FLISGO).
Quando falou em São Gonçalo lembrei imediatamente dos anos em que meu filho, nora e netos moraram por lá, no bairro Brasilândia, e das formaturas dos netinhos no Colégio Cenecista Orlando Gurgel, além das palestras dadas no Instituto de Educação Clélia Nanci sobre cultura negra no currículo escolar e os encontros contra a intolerância religiosa. E aqui relembro São Gonçalo como espaço do primeiro terreiro de umbanda, com grande número de terreiros de candomblé e presença altiva de mães e pais de santo ativistas.
> Descolonizar o futuro para anos novos: é tudo para ontem!
Recordei toda a alegria que vivi neste espaço e aceitei o convite para lançar lá o meu livro, “Martinho da Vila, reflexos no espelho”. Passei, então, a acompanhar e participar das atividades do agora amigo Alberto Rodrigues, da Flisgo.
PublicidadeNeste início de ano, 2021, recebo a notícia da extinção da Secretaria Municipal de Cultura de São Gonçalo. Fiquei surpresa, já que Alberto havia falado que tinham conversado sobre o assunto com a nova gestão da cidade e que estaria tudo certo para a realização da Flisgo 2021. O susto não foi apenas meu.
Alberto me informou que convocou os grupos de militantes representantes da sociedade civil contra a extinção da Secretaria. Com essa movimentação popular, conseguiram fazer um sarau com pessoas de todo o país, mobilizando a mídia e a população do município. Eis que foram bem sucedidos, conseguindo o retorno da Secretaria de Cultura.
Também na Câmara de Vereadores a pressão popular se fez presente. Ativistas da sociedade civil e lideranças femininas da cidade exigiram que a vereadora Priscilla Canedo (PT), única mulher vereadora eleita, ocupasse à presidência da Câmara Popular de Mulheres (CP Mulher), cargo almejado, surpreendentemente, por um vereador médico ginecologista. É inimaginável que um homem médico ginecologista se considere apto a ocupar uma posição que tem missão de dar visibilidade às candidaturas femininas e formular políticas públicas para as mulheres do município.
E por falar de mulheres, a escola de samba da cidade, o GRES Porto da Pedra trouxe como enredo em 2020 uma homenagem à Tia Ciata e às baianas em geral, com seus quindins, comidas, rezas e xirê. Nessa toada, não esqueceram de reverenciar o compositor Donga, responsável pela gravação do primeiro samba no país, “Pelo Telefone”, e defensor dos direitos autorais dos compositores pretos.
Assim, fazendo uso da tradição banta do Ubuntu– eu sou porque vocês são – São Gonçalo continua caminhando nos braços de sua população preta, sendo um exemplo de atuação social e consciência política para todo o país.
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