A verdade saindo do poço é uma pintura de Jean Leon Gerôme de 1896, que está ligada a uma parábola do século. Nela a Mentira, num belo dia, convence a Verdade a se banhar sem roupa num poço e, sorrateiramente sai, veste as roupas da Verdade e foge. A Verdade, não querendo usar as roupas da Mentira, corre em sua perseguição, nua pelas ruas. O mundo desvia o olhar, critica a Verdade, que segue andando nua, em busca de suas roupas. Quanto à Mentira, continua abrindo caminhos com as roupas da Verdade, já que a maioria das pessoas fazem opção por ela, em lugar da Verdade nua e crua.
Neste mês de março, que marca a luta contra qualquer discriminação, relaciono a Verdade de Gerôme às mulheres pretas, pois tiraram sua história e seus significados, não permitindo sua saída do poço.
O mundo judaico-cristão criou como ideal a mulher branca dócil, submissa, sempre pronta a ceder aos interesses e necessidades dos homens, caracterizando as mulheres pretas como hipersexualizadas, briguentas, despossuídas de valores éticos e sociais.Leia também
No entanto, nosso saber cultural, trazido entre os séculos 16 e 19 por mais de quatro milhões de africanos, tem a marca da oralidade e da dança como linguagem não-verbal, que funciona como um verdadeiro arquivo de um saber cultural transmitido nos gestos, atitudes, movimentos, conhecimentos, rituais sagrado e profano, que falam de tempos imemoriais e situam princípios masculino e feminino como equivalentes.
É preciso revelar a contribuição histórica desta dança trazida pelas comunidades de base africana que, com seus gestos e movimentos, representam valores culturais, questões estéticas e étnicas.
Histórias de ontem
A mulher preta foi, nos primeiros tempos de “liberdade”, a viga mestra da família e da comunidade. Neste período inicial de liberdade, as mulheres foram forçadas a arcar com o sustento moral e com a subsistência dos demais. Sem condições de conseguir trabalho conforme as condições acenadas durante a campanha abolicionista, o homem preto ficou sem meios de prover o seu sustento ou o da família. Neste momento, a mulher preta foi a grande batalhadora. Trocou a senzala pelos cortiços das cidades e assumiu, praticamente, as obrigações que possuía na fazenda, dividindo-se entre o quarto que compartilhava em promiscuidade com os seus e as cozinhas das famílias abastadas. Tornou-se escrava de ganho, comprou sua liberdade, criou o seu próprio negócio cozinhando, dançando e cantando.
Essa mulher encontrou caminhos e força em seus orixás e ancestrais. Duplicou e ampliou seu trabalho físico e teve de encontrar energias, consciente ou inconscientemente, para enfrentar todo um complexo de situações novas. Passou a servir à patroa ao invés do senhor. Contribuiu, com a humildade de seus serviços, para a emancipação das mulheres brancas, já que a grande indústria e a organização de classes fizeram quase desaparecer o modelo tradicional da mulher caseira e dedicada integralmente à família.
A participação destas mulheres nas famílias brasileiras, como amas de leite, merece um destaque, já que ocorreu em condições muito específicas. Segundo a literatura existente no século 19, até a Abolição em 1888, o escravo doméstico e a ama de leite são vistos como elementos corruptores da família branca. Tal posicionamento é decorrente da influência da ama nas relações entre casa grande e senzala, devido à forma de transmissão para as crianças de cantigas em língua africana, bem como de histórias e crenças.
A utilização da mulher negra como objeto sexual também não pode ser entendida como resultado da condição da escravidão. Tal fato irá ocorrer com a escrava como decorrência da sociedade patriarcal que legitima a dominação do homem sobre a mulher, sendo que a sexualidade da escrava vai ser vista pelo senhor como fora do círculo familiar, sem limites, normas morais ou religiosas, já que a mulher negra é coisa, vista como objeto sexual. Para justificar tais atos criam o culto à sensualidade da mulata, tirando a responsabilidade da sociedade patriarcal pelo abuso sexual da escrava e colocando tal fato em atributos físicos que tornam incontrolável o desejo do senhor branco.
Histórias de hoje
O simbolismo do princípio feminino na tradição nagô confere um total domínio sobre o corpo, mostrando o que o filósofo Michel Foucault situa como sendo expressão de poderes e saberes que se articulam estrategicamente. As mulheres pretas de terreiro aprendem a gostar do seu corpo, sentir alegria de viver e se entender como inteiras, donas de seu destino.
Dança e cultura são conceitos que se relacionam. Princípio masculino e princípio feminino dançam juntos, se referenciam e se comunicam, sem submissão.
EXÚ promove a comunicação entre todos, gerando nos territórios o reagrupamento de uma memória ancestral, africanizando a transmissão, propiciando o encontro do ontem com o hoje.
Entender uma dança implica dominar o código cultural no qual ela se insere, pois seus movimentos contam histórias e revelam problemas ancestrais, místicos ou da urbanidade contemporânea. A relação do território com a corporeidade criou blocos, ranchos e escolas de samba.
O corpo passa a ser entendido como um lugar de memória, tornando-se arma do oprimido e do opressor, por ser suporte da existência, sendo a corporeidade um atravessamento cultural que o veste cultural e socialmente, com falas e silêncios da oralidade. Os sambistas passam a usar terno e gravata com as cores de sua escola, africanizando a vestimenta europeia.
Nas comunidades de terreiro de candomblé e de umbanda EXU, orixá da comunicação, do movimento e o rei do corpo, rege os processos de dança. Isso acontece tanto no ritual como nas festas das escolas de samba ou no cotidiano. Dançar tem um papel importante no reagrupamento e memória ancestral africana. Mergulhar no mundo do terreiro é terreirizar o mundo por meio de seus próprios conhecimentos.
Importante é receber do solo sagrado a sabedoria dos mais velhos, o vigor dos mais novos e a paciência e o entendimento daqueles que não podem mais contar no tempo – os espíritos do mundo ancestral – que dançam sob as palhas de Omolu, que em seu Olubajé (festa) reúne todos os orixás. As escolas de samba se reúnem e criam sua União das Escolas de Samba, onde todos dialogam e se reforçam.
Mercedes Baptista, que estaria completando cem anos neste maio de 2021, convidada por Katherine Dunham, vai para a Companhia de Balé do Harlem, em Nova Iorque. Ao retornar cria o Ballet Folclórico do Brasil, a partir das danças do candomblé, fazendo grande sucesso na Europa e América Latina com a dança afro, além de se tornar coreógrafa da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro em 1963.
O simbolismo das danças das escolas de samba se relaciona às representações dos terreiros e nos permitem restituir as roupas da Verdade. As PASSISTAS usam o corpo representando os movimentos do ar, da terra, do fogo, da água – orixás, que representam as energias da natureza.
As ALAS representam corpos em harmonia de movimentos e cores, tendo limites de espaço, contando parte da história. As BAIANAS, cabeças coroadas, corpos plenos de experiência vivida e de sabedoria, giram com o planeta e em sintonia com o cosmos.
Os MESTRE SALAS e as PORTA BANDEIRAS simbolizam o território, sua gente e suas propostas ancestrais, espargindo seus valores pelo espaço no tremular da bandeira, protegida e reverenciada. Esse casal representa a continuidade histórica do grupo pelo simbolismo do princípio masculino em comunicação com o feminino, sem submissão, tendo papéis definidos, importantes e necessários.
Daí voltamos aos nossos parágrafos iniciais, ao falar da Verdade fora do poço, constatando a importância das mulheres pretas no desenvolvimento e preservação da cultura brasileira, referência quase nunca feita. Como vimos aqui, elas estão firmemente presentes em todos esses movimentos de vida e sabedoria. É preciso ver mulheres pretas saindo do poço!!!
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