“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Este velho ditado Iorubá foi citado pela historiadora Beatriz Nascimento no documentário Orí, da diretora Raquel Gerber, em 1989. Por esse ditado Beatriz buscava resumir o que estava tentando fazer por meio de sua vida, principalmente do ativismo e do trabalho intelectual.
Em outubro de 2020, quando nos reunimos para escrever a coluna Olhares Negros, talvez não soubéssemos, mas estávamos também escrevendo um livro que carrega o mesmo título da coluna e celebra o seu primeiro ano de existência. O livro, como a coluna, organiza uma obra planejada para inscrever na História os nossos olhares femininos e negros sobre a sociedade brasileira e questões relevantes para toda a diáspora africana, que ao redor do globo, vem sendo recriada por seres como nós.
Como pode Exu matar um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje? Em outras palavras que tratam da metáfora, como uma ação no tempo presente poderia causar consequências no passado? Por estarmos conscientes dessa necessidade e dessa possibilidade é que fazemos o que fazemos, congregando oito orís diferentes e únicos, em torno dos mais variados temas, acontecimentos e questões, apresentando, coletivamente, uma proposta antirracista que reflete sobre o passado, a fim de que se construa um projeto de sociedade digno de todos os seres, o que exige criatividade, sabedoria, conhecimento lógico, compromisso ético, compaixão, visão estratégica e trabalho.
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Nosso coletivo, com sua diversidade, promove a união intergeracional de mulheres negras, tornando possível o encontro entre negras da geração que lutou e construiu as possibilidades de um estado democrático de direito, para que uma nova geração possa transformar direitos em justiça. Criaram possibilidades para que outras mulheres negras tenham possibilidades de acessar formação universitária, não somente como uma proposta de escolarização, mas como um projeto de poder e reestruturação social e intelectual, objetivamente conduzidas pela ancestralidade que respeitam, sem se submeter às imposições desqualificatórias das estruturas racistas. Essa convivência semeadora de frutos é potente e fertilizada por afetuosidade, o que se revela em nossos artigos, discutidos semanalmente em processo metodológico de escuta e fala que concentra o aprendizado de umas com as outras.
Como mulheres negras, intelectuais, ativistas, de axé, do samba, da política, do direito, da ciência, da educação, do audiovisual, da fotografia, mergulhadas em nossa cultura e ecossistemas, moldamos a coluna Olhares Negros como resultado de nossas epistemologias existenciais. Naturalmente, nos opomos e negamos o pensamento racista persistente no Brasil e em todo o Planeta. Decodificamos, para eliminar, a construção secular teórico- científica e política, que nega a plena condição humana de negros e defende hoje, como ocorre desde o século VII antes de Cristo, a tese absurda e já cientificamente superada, comprovadamente falsa, que que afirma ser o trabalho braçal a principal contribuição do povo preto para a sociedade brasileira. Aprisionar as negras e negros às referências de trabalho braçal é uma forma insidiosa de falsificar o passado do Brasil e a história de africanos e de afrodescendentes que tanto contribuíram e lutaram para, como afirma a historiadora Beatriz Nascimento, empreenderem uma sociedade livre, mesmo quando escravizados.
Mirando o pássaro que morreu ontem, nossos atentos olhares negros interpretam as estratégias e adaptações de negação e de retirada de direitos que são esboçadas ao se tornar impossível negar que mais de 56 por cento dos brasileiros são pretos e pardos. Os direitos dessa população não se restringem ao ressarcimento pela inegável e rica contribuição braçal. Afinal, a inteligência, cultura, sensibilidade, imaginação e capacidade de inovar, percepção científica e matemática, além de intuição espacial, moldam o fazer braçal. Mais ainda quando a dança e o canto aprimoram a obra.
Estamos a contribuir com a reconstrução da memória brasileira e da rica contribuição global dos povos negros e dos demais seres silenciados. Para contar geração após geração, que nem mesmo o maior crime de todos os tempos foi ou será capaz de apagar inteligência, astúcia, força, fé e cultura de um povo cujos passos vêm de tempos imemoriais. Estamos aqui para provar que o fluxo do tempo é muito mais complexo do que uma linha que apenas progride ou regride.
Quando nossos ancestrais foram sequestrados e transportados para as Américas, seus sequestradores caíram na própria mentira: acreditaram piamente que estavam trazendo escravos em seus navios. O que eles não sabiam, como também coloca Beatriz Nascimento, é que transportavam para cá um modo de vida sobre o qual nada sabiam e mal sabem até os dias atuais. Lançamos a pedra com a entrega pública do livro Olhares Negros.
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