Por Cezar Britto *
Especial para o Congresso em Foco
Escolhemos viajar para Moscou via transporte ferroviário, pois queríamos sentir o trajeto que testemunhara o constante ir e vir dos revolucionários de 1917. Talvez até para reviver a cena cinematográfica em que John Reed, o estadunidense autor do imperdível “10 dias que abalaram o mundo”, chegara na estação à bordo do trem blindado que cruzava o país portando uma enorme bandeira vermelha e o símbolo da Rússia Comunista no vagão principal. Mas a paisagem apenas exibia outra conhecida personagem da História Russa, a miséria.
Embora encoberto pela brancura impactante da neve, o cenário não conseguia esconder os pequenos casebres que se espalhavam em torno dos trilhos, fazendo-nos lembrar do tempo em que a servidão era legalizada. Concluímos, então, que a pobreza do camponês era tão persistente quanto a história daquele pedaço de chão que resistira às invasões napoleônicas e nazistas, bem assim às trágicas colonizações forçadas do período soviético.
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Chegamos em Moscou no dia 06 de novembro, quando desembarcamos as expectativas que se aninhavam, desconfiadas, em nossas bagagens. Acreditávamos que a Capital Soviética, ao retomar o prestígio político retirado pela dinastia Romanov ao fundar São Petersburgo, registraria uma nova visão sobre o seu passado bolchevique.
A antiga capital de todo Leste Europeu, a mais populosa cidade russa, a segunda europeia e a sexta do mundo estaria comemorando o centenário da revolução que a projetou para o planeta? Quantos comunistas, internacionalistas ou não, teriam chegado no solo que abriga o Mausoléu de Lênin através de seus quatro aeroportos internacionais, nove terminais ferroviários e cento e oitenta e cinco estações de metrôs? O “esquecimento” ainda persistiria?
<< Parte 1: Anotações de um propriaense no Centenário da Revolução Bolchevique
A Moscou que se exibia diante do nosso olhar não parecia diferente de qualquer cidade cosmopolita, recheada de imponente prédios, propagandas comerciais multicoloridas, turistas perambulando entre celulares e policiais, pessoas caminhando apressadas e carros agitados em caótico trânsito.
Hospedamo-nos em um hotel que anteriormente integrava o conjunto de sete grandes arranha-céus construídos por Stalin para demonstrar a força e a pujança da arquitetura da capital bolchevique. Logo depois descobrimos que eles foram privatizados após a onda anticomunista capitaneada pelo ex-comunista e presidente Boris Iéltsin, o primeiro após a queda do sistema soviético. Estes e quase todo patrimônio do povo russo, assim que hasteada a bandeira que retomava as cores imperiais, foram transformados em patrimônio pessoal da nova família governante, de antigos dirigentes da burocracia e de um seleto grupo de “capitalistas convertidos”.
<< Parte 2: Palácios de verão da realeza: Anotações de um propriaense no Centenário da Revolução Bolchevique
Transitar pelas ruas da cidade é conhecer os alicerces de sua história, ainda mais quando adotado o estilo cantado por Luiz Gonzaga, em que o “cristão tem que andá a pé”. E foi caminhando e observando a beleza de cada pedaço construído que descobrimos a Moscou que transporta, no mesmo vagão histórico, o absolutismo monárquico, o comunismo bolchevique e o capitalismo putiniano. Exatamente o que pretendeu o governo soviético quando inaugurou, em 1935, o Metrô de Moscou, também conhecido como Palácio Subterrâneo.
O maior museu subterrâneo do mundo foi projetado como demonstração política-ideológica do poder dos trabalhadores no tempo soviético, pois o seu espaço de locomoção diária seria mais luxuoso e decorado pelos maiores artistas e escultores russos do que qualquer palácio czarista. Não sem razão a enorme quantidade baixo-relevo, painéis de majólica, mosaicos monumentais, vitrais, mármore, granito, vidros de cobalto, dentre outros.
A fervilhante Rua Arbat, a rua mais antiga de Moscou, conserva a fachada de vários prédios históricos do século XVIII, antigas moradias da aristocracia czarista e da burocracia bolchevique, deu início ao nosso roteiro. A partir daí, diferentemente de São Petersburgo, percebemos que Moscou guarda em sua alma a passagem dos bolcheviques por sua história, exibindo a famosa dupla foice e martelo em incontáveis prédios e monumentos, além de mais de oitenta e duas estátuas de Lênin.
O Parque dos Monumentos Caídos, também conhecido como Parque dos Heróis Caídos, bem retrata esta quadra do tempo, expondo estátuas de líderes, políticos, artistas e vários personagens e fatos históricos ocorridos na Rússia.
<< Parte 3: Capital dos Czares – anotações de um propriaense no Centenário da Revolução Bolchevique
O Kremlin, a grande fortaleza construída pelos primeiros czares russos, não podia ficar de fora em nosso roteiro, até porque é a sede a mais importante do poder político russo, excetuando-se apenas o período comandado pela dinastia Romanov. Nele, destacam-se a Catedral da Anunciação, a Catetral do Arcajo São Miguel, a Igreja da Deposição das Vestes, a Torre do Salvador, o Campanário de Ivan III, o Palácio dos Terems, o Palácio das Facetas, o Palácio Estatal e o Grande Palácio do Kremlin. Lá estão enterrados os restos mortais dos czares que antecederam à dinastia Romanov, os prédios que serviram de residência e sede governamental dos líderes russo, a partir de Lenin. Dois monumentos chamam a atenção, especialmente como denúncia prova de megalomania imperial: os maiores canhão e sino de igreja do mundo, ambos quebrariam se ousassem disparar ou badalar uma única vez.
De lá, partimos para a Catedral do Santo Cristo, o ícone renascimento do cristianismo ortodoxo russo e do novo pacto da Igreja Ortodoxa com o Estado Russo. A maior catedral russa, com capacidade para mais de dez mil pessoas, foi construída pelo presidente Boris Iéltsin, após arrecadar mais de quatro bilhões de euros. O lugar não fora escolhido ao acaso, pois o grande templo ortodoxo anterior havia sido dinamitado por Stalin em 1933, para, nele, ser construída a maior estátua de Lênin no mundo. Abandonado o projeto ateísta, Nikita Khrushchev mandou construir a agora dinamitada Piscina Moskva, a maior em céu aberto do mundo e antigo divertimento de várias gerações de trabalhadores russos.
A Praça Vermelha é o símbolo mais visível desta mistura ideológica, pois protagonista e sobrevivente das várias fases da mesma Rússia. É lá que se encontra a Catedral de São Basílio, erguida entre 1555 e 1561, pelo czar Ivan IV, o Terrível, para comemorar a vitória na Batalha de Kazhan. Multicolorida e exótica, dizem que o monarca que matara o seu próprio filho, ao ver beleza da obra, mandara cegar os olhos do arquiteto Posnik Yakolev para que não pudessem construir algo mais bonito. Também está lá o Mausoléu de Lênin e lugar em que foram depositadas as cinzas de vários líderes e heróis soviéticos, inclusive as de Stalin, Molotov, Mikhail Kalinin, Iuri Gagarin, Ivan Konev, Máximo Gorki e a do estadunidense John Reed. Não se pode esquecer, ainda, o luxuoso shopping Gum, construído pela czarina Catarina II e antigo centro de distribuição de alimentos para os soviéticos.
A peregrinação pelos principais pontos de referência que testemunharam o avançar da história russa, inclusive os seus museus, foi interrompida por um fato imprevisível. Falarei sobre ele na fase conclusiva destas anotações. Adianto, entretanto, uma observação comum a todos nós. O que era coletivo, repentinamente, passou a ser privado, cobrado, explorado e destinado aos “modernos ricos” da Nova Rússia. O tempo da educação e da saúde gratuitas era coisa do passado, assim como a alimentação e os transportes subsidiados. Até porque, como em qualquer sistema capitalista, os “donos do negócio” não embutem nos preços qualquer referência à taxa de solidariedade ou igualdade. Mas sobre estes assuntos escreverei depois.
*Colunista do Congresso em Foco, Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.