Me sinto privilegiada de ter tomado conhecimento da existência e obra de Carlos Marighella num contexto político que, diferente dos dias atuais, era efervescente, esperançoso e onde o espírito revolucionário Marighellista emergiu com força e culminou numa revolta popular espontânea e genuína, mesmo que tenha sido pautada e suplantada, posteriormente, pela grande mídia e seus empresários, seguindo rumos sombrios. Ainda assim, restou, desse controverso 2013, um pequeno foco de luz e um ambicioso sonho no coração de um artista: MARIGHELLA, um filme de Wagner Moura.
Em 2013 eu estudava para ingressar no ensino universitário. Naquela época eu nunca tinha escutado falar em Carlos Marighella. Eu andava pelas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, indo a pé da Praça Mauá, onde passava as manhãs trabalhando num call center, até a rua do Riachuelo, onde assistia, a noite, as aulas do Pré-vestibular Comunitário Almirante Negro (PVCANSA). No meio do ano de 2013, mais precisamente em junho, a professora de geografia anunciou à turma que aquela aula seria na rua. Com isso, eu participei, pela primeira vez na vida, de uma manifestação popular. Nas ruas aprendi mais sobre história, geografia, química, matemática, sociologia, filosofia, entre outros conhecimentos, do que em qualquer sala de aula que já estive antes. Isso porque a luta educa. E foi nos postes públicos que eu conheci Marighela.
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Eu via as suas palavras e a sua imagem estampando as ruas. Lia trechos do seu “minimanual do guerrilheiro urbano” nos panfletos que eram entregues por manifestantes. A partir dali surgiu uma necessidade e um desejo intenso de ler o manual inteiro, mas havia uma advertência: quem fosse pego lendo ou portando o tal manual, mesmo após 40 anos de sua publicação, poderia ser considerado perigoso e ir preso por ter, supostamente, a intenção de cometer atos terroristas. Eu, uma menina preta, moradora de favela e sem dinheiro para pagar advogado, levei aquilo muito a sério, ainda mais após o fatídico dia 20 de junho de 2013, quando mais de 1 milhão de pessoas ocupavam livremente as ruas, mas era preso, injustamente, o jovem preto Rafael Braga, pelo fato de estar portando garrafas com substâncias com as quais, segundo seus acusadores, poderia fabricar a famosa arma química conhecida como “coquetel molotov”.
Apesar disso tudo, eu pegava cada panfleto e lia. Tentava memorizar todas aquelas palavras e, antes de subir no ônibus e voltar para casa, me livrava de todo aquele material e seguia pensando naquelas palavras no chacoalhar do ônibus. O tempo passou e, apesar de ouvir alguns especialistas políticos e intelectuais afirmarem que 2013 foi o início do fim, penso que nem tudo o que surgiu desse ano foram desgraças.
Inspirado na biografia, publicada em outubro de 2012, escrita pelo jornalista Mário Magalhães, “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, Wagner Moura, com o incentivo da própria neta do lendário guerrilheiro, Maria Marighella, decidiu, em 2013, que iria fazer um filme sobre seu conterrâneo. É curioso notar como atravessam os tempos as respostas violentas do Estado Brasileiro sobre tudo aquilo que gira em torno de Carlos Marighella. Não seria diferente com um filme que mostra, explicitamente, a parte mais polêmica e intensa de sua vida política. O filme teve sua estreia postergada ao máximo no Brasil devido à censura imposta por parte da Agência Nacional do Cinema (Ancine), conforme denuncia o próprio diretor do longa-metragem em diversas entrevistas.
Ao assistir o longa-metragem, já agora, menos menina que em 2013, já conhecendo melhor a obra do comunista baiano, a única conclusão possível é que Marighella não é um filme, ele é dois filmes, no mínimo e, diga-se de passagem, este não é o primeiro filme feito a respeito do guerrilheiro. Marighella, o homem, é gigante demais para caber num filme, mesmo num longa com mais de duas horas. Marighella, o filme, é complexo, recortado e não acaba quando sobem os créditos. O filme cumpre bem o seu papel de recuperar o nome de Carlos Marighella no imaginário social brasileiro, não como o inimigo número 1 do Brasil, mas como um homem que amou profundamente o seu país e o seu povo, que lutou contra a opressão de uma forma intensa e legítima e sacrificou sua própria vida em nome da democracia. No entanto, o filme deixa lacunas importantes para um público que conheceu Marighella através de um filtro fascista e manipulador.
PublicidadeNão temos a oportunidade de perceber, através do filme, como era de fato a vida da população preta e pobre na época da ditadura militar. Apesar de parecer algo muito óbvio para muitos de nós, não o é, sobretudo para uma juventude que dorme e acorda sendo embalada pelo canto hipnótico e mentiroso da extrema-direita, que afirma, sem nenhum constrangimento, que o golpe militar de 1964 teria sido uma revolução. Que as só eram presas as pessoas que faziam “coisas erradas”. A carestia de vida, a desigualdade social e econômica brutal, que se aprofundou ainda mais no país durante a ditadura, também não pudemos ver no filme. E é por isso que esse filme não termina no final da sessão, mas segue gerando discussões muito interessantes, apaixonadas e necessárias.
Uma dessas discussões que o filme acabou suscitando foi a negritude de Carlos Marighella, que, apesar de ter a pele mais clara, por ser filho de um italiano, tinha traços negróides, devido sua mãe, que era negra e filha de escravizados africanos, por tanto, preto. No entanto, pelo fato de Wagner Moura ter escolhido o ator e cantor Seu Jorge para o papel principal, tendo este a pele mais retinta que a de Marighella na vida real, o filme sofreu ataques, justamente por ir na contramão das novelas e do cinema nacional, que embranquece personagens pretos, praticando aquilo que Wagner Moura chamou de “síndrome da escrava isaura”, em referência a uma obra que embranqueceu uma personagem “mestiça”. Apesar de não ter sido proposital, o filme deu ainda mais corpo a uma discussão que os movimentos negros fazem no Brasil há muito tempo, questionando porque figuras negras proeminentes, como Machado de Assis são sistematicamente embranquecidas, sobretudo quando nao podem ser apagadas da história.
Marighella foi um político progressista, profundamente comprometido com o direito da classe trabalhadora, lutando por direitos como o 13º salário, direito à greve, liberdade de imprensa e de organização política, enquanto deputado e não somente quando seguiu o caminho da luta armada. Isso também não vemos no filme. Outra coisa que não encontramos no filme são as viagens de Marighella, onde ele pode aprender muita coisa e influenciar movimentos populares fora do Brasil. Também não vemos no filme as estratégias utilizadas por Marighella e os demais combatentes, pelo menos não de forma explícita. As ações estão lá, mas não são mostradas dentro de um contexto menos recortado, em que fosse possível compreender melhor como essas ações eram planejadas, as razões específicas pelas quais os revolucionários faziam o que faziam. Seria impressionante ver um personagem preto que, além de pegar em armas e ser sedutor, fosse também um grande e inteligentíssimo estrategista, como de fato era Marighella.
Então, o filme é um bom detonador de perguntas e fomentador de discussões importantes, mas, para conhecer Marighella e compreender a complexidade de suas ideias é preciso um pouco mais do que passear por esse “fetiche” esquerdista da luta armada no Brasil. E é por isso que eu vos digo: Marighella não é um filme. Marighella é gigante demais pra caber em qualquer obra, pois Marighella se expandiu. Marighella não é mais um homem. Marighella é uma ideia tão revolucionária que assusta poderosos e fascistas até os nossos dias em todo o mundo. Celebremos Carlos Marighella!
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