Era minha primeira semana na comunidade como pesquisadora da UFBA. Na dúvida não entrei na casa de Xangô. Preferi ficar na varanda de onde eu via toda movimentação do lugar. Parecia até combinado um desfile de corpos pretos a caminhar em torno da casa de Xangô e pela comunidade. A maioria era mulheres.
Também alguns homens que vestiam suas roupas brancas apropriadas para o ritual daquele dia. De vez enquanto era possível sentir um leve cheiro de alfazema que exalava das roupas limpas e bem passadas. A casa estava cheia quando surge Mãe Stella acompanhada de uma menina, ou melhor, uma mocinha. A Mãe me dirige um leve aceno e entra. A menina parou perto de mim. Ela percebeu que eu estava entre incomodada e curiosa sem saber onde era mesmo o meu lugar. Esta é uma situação recorrente no terreiro. A menina em seguida se apresentou como Nicéia, uma filha de Oxum.
No candomblé, pertencer ao mesmo Orixá é fazer parte de uma família mesmo sem ser uma pessoa iniciada. Perguntei se podia ficar naquele lugar? Logo entendi que todos os espaços são livres, mas não para todas as pessoas. Entendi também que os lugares como os objetos não representam. Cada coisa é o que representa. Eu era apenas uma visitante, entendi logo. O lugar estava tomado pelo cheiro de uma comida de azeite e pimenta. De um jeito bem cerimonioso perguntei se a comida seria servida aos visitantes. Aí veio a explicação completa. Toda quarta-feira parece dia de festa. Além dos filhos e filhas de Xangô e Oyá, chegam também os Ogans e Obás. Mas a maioria mesmo são as mulheres que chegam bem cedo e cuidam de tudo, inclusive do amalá, que será distribuído para todas as pessoas que estão visitando o Afonjá.
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Daquele dia em diante Niceia esteve cada vez mais perto de mim. O mais interessante é que tudo que faltava, ela dizia: “Lá em casa tem. Vou buscar”. Logo ela estava de volta trazendo o que faltava. Podia ser alho, cebola, sal, uma peneira, um facão ou um comprimido para dor de cabeça. Um dia alguém falou: “Dor de cabeça? É melhor tomar um cafezinho.” E aí Niceia mais uma vez disse: “Lá em casa tem. Vamos lá”. Naquele dia eu fui apresentada a sua mãe Dona Nidinha, Dona Nídia ou Mãe Nidinha, que vive a tradição entregue por sua avó Mãe Senhora, a quarta Iyalorixá do Afonjá e todas as mais velhas do lugar.
Outras pessoas foram chegando e fui apresentada à outra filha. Era Cátia, que mais tarde se tornou Ekedi do Oxóssi de Mãe Stella. Logo aparece mais uma filha, que lá de fora do portão fala bem alto: “Mãe! Bença Mãe! Eu já vou!”
Dona Nidinha sorri abençoando Cida dizendo Ogun a ti onan. E fala pra mim: “Eu tive nove filhos. Estão todos criados com ajuda de Xangô e Iemanjá. Trabalhei muito desde criança. Fui eu que tomei conta de minha Vó Senhora. Eu não estudei bastante como as minhas irmãs, para ganhar a autonomia do jeito como eu desejo para as minhas filhas, mas ensino tudo que eu sei. Já avisei que só vão sair de perto de mim quando cada uma ganhar seu dinheiro e pagar as suas contas. Quando Cida disse que queria ser baiana de acarajé depois de ter estudado. Ela fez o curso de contabilidade. Espero que dê certo. O tempo passou. O importante é que Cida tenha sua autonomia e trabalhe sem patrão. A mais nova é esta daí”.PublicidadeÉ Iraildes, disse apontando para uma menina séria, quase escondida por um livro de teatro: Porque Oxalá usa Ecodidé, da autoria do seu avô o mestre Didi. Enquanto as pessoas comunicavam-se todas ao mesmo tempo. Muito franzina, Iraildes possuía um problema de formação óssea nas mãos e nos pés. O que poderia ser considerado uma deficiência foi compreendido e aceito como um axé de inteligência, força e esperança. A menina, que poderia ser considerada uma deficiente, cresceu e se tornou uma mulher forte como Dona Nidinha lhe ensinou.
Hoje que a conheço bem imagino que o sonho de Iraildes era tão grande que não cabendo no seu corpo frágil, segurou os fios coloridos como se fosse as raízes mais profundas plantadas nas terras do Afonjá. Iraildes lembra o dia quando ainda criança entrou correndo no barracão e encontrou o mestre Abdias ensinando a arte e a tradição do pano de Alaká para as mulheres mais velhas do terreiro. Não houve continuidade.
Mãe Stella arquivou o projeto que mais tarde despertou o sonho de Iraildes e que o transformou em projeto de vida. Fazer pano da costa, fazer o Alaka é preservar, transformando fios em tecido da maior importância religiosa para as mulheres mais velhas do axé, preservando a arte do candomblé e identidades ancestrais. Com a economia solidária este fazer de Iraildes se expande para outras pessoas e outros terreiros a exemplo do terreiro São Jorge da Goméia com a Mameto Camuricy.E Niceia? Por onde anda Niceia? A mocinha que eu conheci começou a trabalhar muito cedo, está perto da aposentadoria. Continuando o sonho de Dona Nidinha entrou na faculdade para o curso de Serviço Social e já tem planos importantes para continuar cuidando de pessoas, incluindo a educação de crianças pequenas no Iya Detá, terreiro da sua família biológica.
Cida já mereceu uma estátua na orla marítima de Salvador. Isto significa que, quando uma baiana de acarajé, está sentada diante de seu tabuleiro, é também por estar envolvida na sua totalidade humana e ancestral. Ela não é apenas uma vendedora de um quitute de origem africana. O acarajé é fruto do seu autoconhecimento. Ela pertence a uma família ancestral. Diante dela está exposta a história de seu corpo, da sua filiação espiritual magnificada. Suas emoções existem inseparáveis do seu contexto. No seu tabuleiro está exposta a sua história integral e integrada à história dos seus ancestrais. O trabalho ainda encontra na realidade cotidiana a inteligibilidade de como esta mulher vivencia na sua prática uma matemática que envolve a intuição, sentimentos, afetos e emoções.
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