Nos últimos dias a imprensa se debruça sobre novas demandas ao espaço da escola, abusos sexuais no espaço das maternidades e a reivindicação de espaço para as Forças Armadas no processo eleitoral. Em comum estamos falando de temas clássicos da definição dos espaços das instituições e dos mecanismos de controle. Isso ocorre – de maneira mais acelerada nas últimas décadas – com o predomínio do que se convencionou chamara de pós-moderno, à falta de um termo mais adequado. Os referentes tradicionais foram abolidos ou enfraquecidos, ainda não se colocou nada no lugar. Cada caso ilustra um aspecto diferente da mesma questão.
Comecemos pela maternidade – o médico abusa da privacidade devida à parturiente para – como diria o ex-deputado Roberto Jefferson – satisfazer os seus instintos animais mais primitivos (a expressão é do tempo em que se acreditava na existência da corrupção). A parturiente precisa de privacidade. Como garantir a privacidade da paciente se o médico que tem acesso à sala de parto e deveria ser o curador dessa privacidade não segue os protocolos? Aqui claramente existem normas externas e externas, mas a aderência às mesmas está fragilizada pela cultura de impunidade e leniência e pelos elevados custos e riscos para quem denunciar. O caso deste médico não é isolado. A inércia e o poder das corporações falam mais alto. Ao abrir mão e de seus instrumentos de auto-controle essas instituições e seus profissionais se expõem a ampliar o espaço para perda de sua autonomia. O conceito de certo/errado, traduzido no jargão como tolerância zero, desaparece na cultura pós-moderna. Se não há valores em comum, quem guarda os guardas?
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Às ameaças à integridade da escola são mais sutis. A partir do final do século dezenove a escola começou a ser sendo bombardeada com novas demandas. Depois passou a ser questionada na sua função central. Tornou-se depósito de todas as nobres aspirações da sociedade (ou melhor dizendo, grupos de interesses mais ou menos bem intencionados). Quem tiver curiosidade procure ler a infindável lista de emendas à LDB – Lei de Diretrizes e Bases – propondo novas funções para a escola. A bola da vez é a chamada para a escola entrar no campo da saúde mental para ajudar a enfrentar o aumento da incidência de transgressões associadas ao uso cada vez mais precoce de drogas, álcool e práticas sexuais pouco seguras do ponto de vista sanitário. Nada errado quanto à ideia, a questão é: isso é função da escola? E se for, ela dá conta disso- especialmente quando não está dando conta de seus desafios mais elementares? Esta é mais uma de centenas de demandas que vão se acumulando, sem qualquer análise prévia de viabilidade, custos ou consequências. Com isso, o espaço institucional que deveria ser próprio da escola se torna cada vez menos nítido ao mesmo tempo em que se vê cada vez mais atropelado por infindáveis demandas externas – todas, claro, “do bem”. Quem guarda os limites da escola?
E por falar em guardar e guardas, a imprensa também noticia e debate o interesse – sem dúvida insistente e inusitado – das Forças Armadas em tutelar as eleições – ou seja, abrir uma brecha no espaço de autonomia de uma outra instituição. De um lado a pretensão questiona a autoridade e a competência substantiva e formal da Justiça Eleitoral – um calcanhar de Aquiles de qualquer sistema democrático. De outro, um poder se auto-define como legítimo para exercer o controle sobre as ações do outro. Trata-se sempre do mesmo e infindável processo de saber quem guarda os guardas.
Em comum, esses três exemplos nos ajudam a refletir sobre a missão e limites das instituições e a fragilidade dos sistemas de salvaguarda que sustentam a vida em sociedade. Isso tem a ver com a delimitação das funções de cada uma e com a legitimidade de mecanismos de controle internos e externos das instituições.
No caso da saúde estamos falando do que seria um “desvio de conduta”, os protocolos, no caso, foram violados. Certamente seria possível aprimorar os sistemas de prevenção a esse tipo de crime – mas os mecanismos institucionais para tanto não se encontram presentes.
No caso da educação a “ameaça” é mais sutil, pois a rigor tudo cabe dentro do conceito de educação – e, de seu instrumento operacional, que é a escola. Na prática não é bem assim, umas funções acabam prejudicando ou mesmo expulsando as outras. Não há guardas e vigias para proteger as fronteiras da escola – e os que deveriam ser guardas ou guardiões também querem invadi-la. O risco de diluir algo já bastante fluido é muito grande. Quando a escola vira solução para tudo, quem protege o espaço adequado para uma experiência escolar minimamente adequada, que hoje raramente é oferecida para a esmagadora maioria da população? E que até mesmo essa função está sendo questionada?
E aqui chegamos às eleições. Quem guarda os guardas! A questão da autonomia dos poderes permanece como um vulcão adormecido em todas as sociedades, e quanto mais frágil o tecido social, mais fácil se torna sua erupção. Em condições normais de temperatura e pressão – desde pelo menos as discussões de Platão e durante toda a Idade Moderna – o desafio consiste em assegurar o controle das instituições militares pelo Poder Civil. E, pelo andar da carruagem, o desafio continua.
A violação das regras pelo médico não coloca em questão a instituição hospitalar e seus sistemas de controle – mas, na ausência de valores éticos socialmente compartilhados, aciona o botão de alarme para aperfeiçoamentos operacionais. A inclusão de mais atribuições à educação é mais perigosa, pois tudo e faz “pelo bem” e pode comprometer ainda mais uma estrutura já extremamente fragilizada. Já a outra ideia se parece com a história de colocar a raposa para cuidar do galinheiro.
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