Dados da organização internacional Repórteres sem Fronteiras indicam que o Brasil não é um bom local para o exercício profissional do jornalismo. Em 2020, pelo segundo ano consecutivo, nosso país caiu no ranking de liberdade de imprensa da organização, ocupando o 107º lugar em uma lista com 180 posições. De acordo com o relatório, a eleição de Jair Bolsonaro em muito contribuiu para esta piora, inaugurando um período sombrio para as liberdades democráticas.
Infelizmente, agressões aos profissionais de imprensa não são novidade no Brasil, sendo parte integrante da nossa história republicana. Entretanto, é inegável a piora no ecossistema informacional brasileiro desde a ascensão de Bolsonaro à presidência, que legou ao país uma enxurrada de notícias falsas – as chamadas fake news – além do sistemático desrespeito ao decoro que permeia as relações entre imprensa e poder público, nunca visto antes.
Os ataques perpetrados contra a imprensa estão longe de serem meros arroubos retóricos do presidente. Eles se constituem como uma estratégia metódica cujo objetivo é o cerceamento da liberdade de expressão e fim do pluralismo de ideias no Brasil. Democracia pressupõe acesso à informação e o trabalho da imprensa é um dos pilares de edificação dos regimes democráticos. Sabemos onde Bolsonaro quer chegar com estes ataques.
O mais novo se deu no último final de semana. Após ser perguntado sobre os cheques depositados na conta de sua esposa Michelle Bolsonaro por Fabrício Queiroz, totalizando R$ 89 mil, o presidente disse que gostaria de “encher de porrada a boca” do repórter, em uma evidente ameaça ao trabalho deste profissional. Sobre o questionamento acerca das quantias depositadas, o silêncio. Para fugir das suas responsabilidades, Bolsonaro ataca.
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A turma bolsonarista, como esperado, saiu em defesa do presidente fazendo uso do expediente que mais a caracteriza: divulgando notícias falsas sobre o episódio. Porém, dessa vez, a mentira teve perna curta, muito curta. Mesmo com o conhecido esforço desempenhado pelos robôs nas redes sociais, a narrativa mentirosa dos milicianos foi rapidamente desmontada pelos fatos.
PublicidadeO mais preocupante nessa escalada de violência contra o trabalho de jornalistas é a sensação de impunidade frente aos ataques perpetrados por Bolsonaro e apoiadores. Em face de tamanha passividade, nosso mandato resolveu ingressar no Supremo Tribunal Federal solicitando abertura de inquérito para investigar a ameaça de agressão proferida por Bolsonaro contra o repórter que perguntou a origem dos R$ 89 mil depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Mas não ficamos apenas nisso. Também acionamos a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) para investigação da conduta de Jair Bolsonaro. Somente no primeiro semestre de 2020, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) contabilizou 245 ocorrências de ataques contra a imprensa e o jornalismo profissional desferidos pelo presidente. Destes, 32 foram ofensas pessoais a profissionais da imprensa.
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A ameaça de violência busca intimidar o trabalho destes profissionais, constrangendo-os ilegalmente no exercício de sua profissão e desestimulando a publicação de informações que podem ser julgadas impertinentes pelo governo, indo frontalmente de encontro àquilo que é a natureza do jornalismo: informar a população sobre as diferentes opiniões, nuances e implicações que caracterizam os fatos noticiados pela imprensa.
Não custa lembrar que a liberdade de imprensa e manifestação do pensamento é disciplinada na Constituição Federal de forma genérica em seu artigo 5º e de forma mais pormenorizada no artigo 220, sem falar nos tratados internacionais sobre o tema que têm o Brasil como signatário. A liberdade de expressão é um direito humano consagrado no Direito Internacional e o trabalho de uma imprensa livre dá a medida do comprometimento democrático de uma nação.
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