Com um sistema primordialmente baseado no direito ao voto, o funcionamento institucional da representatividade democrática é por demais dependente das subjetividades e valores desse ato de votar, por sua vez refém e submisso à compreensão da política como um espetáculo midiático que atinge o seu ápice no período eleitoral, tornando-o um evento de mais importância cognitiva do que, propriamente, expressão de cidadania.
Se tivéssemos aprendido mais com a filosofia de Atenas lembraríamos que, para ser realizada, a democracia deve ser um exercício de interação constante entre representações eleitas e a sociedade a quem deve servir. Um mandato não é uma carta em branco para ser escrita ao bel prazer de quem a recebe via eleição, mas uma responsabilidade chancelada pela maioria das pessoas, para que se preste um serviço pelo bem público geral. Pelo menos é esse o princípio ético e jurídico que orienta nossa Carta Magna. Por isso, insisto que dar um voto não é como apostar em uma corrida de cavalos, onde focamos emocionadamente na disputa cabeça a cabeça e, cruzada a linha de chegada, todo mundo volta para casa, a pista vazia, os cavalos exaustos, vencedores felizes e perdedores rasgando bilhetes e já pensando no próximo momento de aposta. Votar é apenas o primeiro passo de uma longa caminhada de quatro anos, que deve ser sinalizada pelo monitoramento e controle social cidadão: deve ser aquele momento, diria o Pequeno Príncipe, que nos torna também responsáveis pela escolha que fazemos.
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Governança participativa e transparente, porém, não são conceitos novos para a condução do bom governo. Eles são fundamentos basilares da administração da res publica que, de forma grave, são hoje práticas corrompidas cotidianamente pelo simulacro do pragmatismo na política real. Não por acaso que, a fim de resgatar os princípios que possam reduzir os riscos provocados pela condução equivocada da gestão pública, tanto a Constituição Federal quanto a Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável dão especial importância ao combate à opacidade administrativa, promovendo o fortalecimento institucional e jurídico para monitorar as responsabilidades dos entes públicos.
Diante da incompatibilidade entre as ações do governo federal e a implementação de políticas que possam levar o Brasil a atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a responsabilidade dos governos municipais aumenta substancialmente. Desregulações, principalmente na área industrial e financeira, têm sido responsáveis pelos maiores desastres socioeconômicos e ambientais dos últimos 60 anos. Como disse até um banqueiro-investidor em um evento na ONU, “a Agenda 2030 é uma resposta às falhas de mercado produzidas pela falsa noção de equilíbrio no movimento de capital e realização assimétrica de seu poder”. E hoje, ainda bem, são muitas as vozes que entendem que ela que pode nos ajudar a mudar esse desequilibrado jogo de uma cultura política e um sistema econômico que, juntos, alimentam-se de desigualdades e privilégios e fomentam uma ideia de progresso que não considera o custo socioambiental coletivo de seus empreendimentos.
O território é o espaço concreto onde a vida efetivamente acontece através das interações humanas diretas, não somente aquelas midiatizadas. A atividade econômica transcorre no município. É aí que está a terra, capital básico da agricultura; o terreno para a fábrica, a casa para a escola, o prédio do hospital ou o rio para a energia, transporte e água potável. Como tantos autores e autoras já mostraram, a mudança necessária na vida das pessoas em seus agrupamentos sociais em direção ao bem-estar precisa ocorrer, de fato, no município. Precisamos transformar os territórios, um a um, se quisermos transformar o mundo como um todo.
Transformar o mundo, por sua vez, não é um sonho impossível, apesar de tudo. E não é preciso reinventar a roda: a Agenda 2030, um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade aprovado pelos 193 Estados-membros das Nações Unidas em 2015, tendo o Brasil como um de seus principais líderes[1], articula os direitos sociais, ambientais e econômicos de todas as pessoas de forma integrada e indivisível, com 17 grandes objetivos e 169 metas que devem ser alcançados por todos os países, até o ano de 2030. É um guia para o bom governo que pode se materializar nos territórios.
PublicidadeNo Brasil, as eleições municipais de 2020 são uma oportunidade ímpar para promover essa agenda, ainda mais relevante nesse contexto da pandemia da covid-19. Segundo estimativas do Banco Mundial, a pobreza extrema atingirá mais de 520 milhões de pessoas no mundo. Os efeitos econômicos da pandemia retrocederão os ganhos sociais em mais de dez anos, segundo o FMI, caso os governos não ajam de forma contracíclica e eficiente. A situação é mais desafiadora em um país como o Brasil, com 5.570 municípios, metade deles com Índice de Desenvolvimento Humano mediano ou baixo.
As soluções para enfrentar a pandemia e as imensas desigualdades nacionais passam, portanto, por municípios mais justos, equitativos, com gestões comprometidas com a transparência e responsabilidade fiscal, com a economia circular, com a alavancagem social – cuidar das pessoas, principalmente das mais vulneráveis, as que têm fome, as que sofrem com as violências de gênero, com o racismo e as desigualdades –, com a proteção, preservação e recuperação ambiental.
Foi pensando nisso que o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030 (GT Agenda 2030), coalizão que reúne 50 organizações e redes brasileiras, lançou a campanha Mudar o Jogo, cujo objetivo é estimular candidaturas ao Executivo e Legislativo municipais e eleitores e eleitoras a se comprometerem com a ideia de que é possível transformar o mundo para melhor. Entre as atividades da campanha, além da publicação de material nas mídias sociais, como cartazes, vídeos e podcasts, foram programados debates públicos virtuais sobre a importância da Agenda 2030 para os municípios, oficinas práticas e disseminação de conteúdos de parceiros do GT Agenda 2030 que promovem os ODS no contexto eleitoral.
Diante das múltiplas crises que o Brasil enfrenta, acirradas pela covid-19, a maneira de se pensar a gestão pública e vida nos municípios precisa mudar. Mas, para mudar o jogo, mais do mesmo não é solução, é preciso um alinhamento urgente ao desenvolvimento sustentável – aquele que cuida do presente já de olho em um futuro melhor. Por isso, nessas eleições 2020 precisamos voltar a falar da importância do voto e voltar a inspirar as pessoas para que creiam, de novo, que escolhas conscientes podem mudar o jogo dessa política tão degradante que vive o Brasil. Essa é também uma campanha sobre esperança no futuro, mas, contrariamente a uma boa parte das propagandas eleitorais, sem querer enganar ninguém. Porque não basta votar. A mudança só virá se, depois das eleições, continuarmos participando e monitorando quem elegemos para que haja evolução da prática política, com mais transparência e governança responsável necessária e, assim, o Brasil retorne aos trilhos do desenvolvimento sustentável.
[1] A Resolução 70/1/2015 estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas, sucessores dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), para serem alcançadas até 2030.
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