Por Juliana Fratini*
Nos últimos anos, quando o pêndulo do poder se movimentou para a direita e à extrema direita, a preservação dos valores democráticos e republicanos passou a ser questionada. A partir da mudança de agenda, em que a pauta neoliberal passou a ser mais bem implantada, muitos grupos organizados da sociedade civil rapidamente perceberam a perda de direitos e de representatividade. As reformas defendidas pelos novos mandatários, que se consolidaram a partir das eleições de 2018, assim como a ascensão de uma cultura neoconservadora, respingaram nas temáticas femininas e o papel político da mulher neste contexto.
Nas eleições de 2018, contudo, as mulheres conquistaram mais espaço na Câmara Federal por meio da eleição de 26 novas deputadas (parte delas “de direita”), que hoje correspondem a 15% do corpo de parlamentares federais; o número não se difere muito das eleições municipais de 2020, quando 16% de vereadoras foram eleitas para as Câmaras Municipais. A expectativa de aumento da tomada de poder político pelas mulheres, de qualquer modo, ficou muito aquém do esperado, já que os partidos são obrigados a apresentar 30% de candidaturas femininas para disputar eleições. A realidade é que, na média, elas alcançam apenas a metade do espaço que a lei incentiva.
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Antes, lembremos aqui que “democracia” e “república” são conceitos muito explorados, mas pouco compreendidos em essência e parcialmente experimentados na prática. Enquanto a democracia se estabelece como um regime que assegura os direitos civis (liberdade de expressão, liberdade de imprensa, ir e vir, livre associação, fé religiosa), direitos políticos (direito de votar e ser votado, apresentação do contraditório na eleições para alternância de poder, eleições regulares), os direitos sociais (como à saúde, educação, moradia, emprego, entre outros); a república se estabelece como um pacto em torno do “bem comum” em que as vontades individuais são resignadas em benefício de um bem que seja para um coletivo mais amplo.
Entre os estudiosos, as discussões vão desde a defesa das individualidades que se encontram com outras vontades individuais para a formação de grupos de poder democráticos, à abdicação da vontade individual em favor de “um bem maior” de essência republicana. Nessa linha, é possível dizer que a República Federativa do Brasil, que é republicana e atua por meio do regime democrático, possui todas as características de um país que valoriza tanto os anseios individuais (e grupos individualizados) quanto o coletivo geral. Os números mostram, contudo, que república e democracia são experiências apenas parcialmente desfrutadas pelas mulheres brasileiras.
Entre os esforços de parlamentares para fortalecer a representatividade feminina, experimentos realizados por grupos da sociedade civil e partidos políticos (ainda que timidamente) para impulsionar o ingresso da mulher na política institucional, o exercício da democracia deliberativa tem contribuído para mostrar ao mundo que a equidade de gênero na tomada de decisão é benéfica para a política. A democracia deliberativa, afinal, é um modelo que funciona a partir da formação de pequenos públicos de cidadãs e cidadãos sorteados na população, que representam diferentes visões e aprendizados sociais sobre determinado problema público, e que juntos têm a chance de se apropriar de informação especializada e deliberar sobre o caminho mais apropriado para lidar com o tema em questão.
O modelo prima pela equidade de gênero – sendo os participantes 50% homens e 50% mulheres –, além de suscitar, parcialmente, a democracia direta, já que os próprios cidadãos e cidadãs apresentam suas recomendações sobre o problema debatido. Os temas variam. As conclusões do grupo são, então, apresentadas aos representantes eleitos e ocupantes de postos públicos, assim como divulgadas para o público geral, para que as conclusões do grupo deliberativo sejam levadas em conta na decisão de interesse público.
A prática da democracia deliberativa, por incorporar valores democráticos e republicanos é, atualmente, uma experiência bem sucedida e promissora. Esse experimento que tem ocorrido em diversas partes do mundo. Uma Assembleia Cidadã foi decisiva na aprovação de emenda constitucional sobre o aborto na Irlanda, com processo iniciado em 2017. A Assembleia Itinerante de Bogotá e o Painel Cidadão de Toronto são outros exemplos; no Brasil contamos com diversos projetos do grupo Delibera Brasil, como o Decidadania.
Para fomentar ainda mais a participação da mulher na política institucional, o exercício da democracia deliberativa pode ser muito apropriado para os partidos, que ainda são instituições predominantemente masculinas. Para deixarem de sê-lo, não bastam as leis que obrigam o cumprimento de cotas para mulheres – tanto para indicação para disputar as eleições, quanto para receber recursos do Fundo Eleitoral –; as mudanças precisam ser culturais, compreendidas racional e afetivamente, deliberadas em conjunto para se chegar a acordos fidedignos.
A prática da democracia deliberativa visa melhorar a qualidade das relações e fazer com que democracia e república cooperem de maneira mais consistente para a defesa dos direitos individuais e coletivos, tal como garantir a representatividade feminina, independentemente do movimento do pêndulo ideológico e mudanças conjunturais. Para haver, de fato, democracia e república, as mulheres brasileiras precisam estar muito mais incluídas na política institucional, dado que hoje estão entre 84% e 85% fora do processo da realidade dos parlamentos.
*Juliana Fratini é cientista política, organizadora do livro Campanhas políticas nas redes sociais: Como fazer comunicação digital com eficiência (Ed. Matrix, 2020), e co-fundadora do coletivo Delibera Brasil.
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