O dramaturgo Dias Gomes construiu um personagem impagável. O Prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu, neto de Firmino e filho de Eleutério, notabilizou-se por ser corrupto e demagogo. O palavreado utilizado por Odorico, particularmente na interpretação magistral de Paulo Gracindo para a televisão, era peculiaríssimo. Os últimos episódios da cena política nacional evocam as pitorescas construções vernaculares de Odorico. Sem erro ou excesso, somos testemunhas estarrecidas de um debochismo juramentado e praticante.
“Emílio Odebrecht, dono da maior empreiteira do país, disse à Justiça que o caixa dois não nasceu ontem. ‘Sempre existiu. Desde a minha época, da época do meu pai e também de Marcelo’, contou. Como o patriarca Norberto fundou a empresa em 1944, isso significa que a prática tem ao menos sete décadas. Sobreviveu a quatro regimes políticos, sete trocas de moeda, múltiplos arranjos partidários. ‘Sempre foi o modelo reinante no país’, resumiu Emílio, que deve calçar uma tornozeleira eletrônica durante os próximos quatro anos. Marcelo, o herdeiro, ocupa uma cela em Curitiba desde junho de 2015. Nos próximos dias, as delações do clã abrirão um novo capítulo na crise brasileira. A Procuradoria-Geral da República pedirá ao STF a abertura de ao menos 80 inquéritos contra políticos. A lista, ainda secreta, assusta figurões do governo e da oposição. Todos se beneficiaram do mesmo ‘sistema ilegal e ilegítimo de financiamento’, para usar a expressão cunhada pela própria Odebrecht” (http://goo.gl/rT6CR6).
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Os principais caciques do PT, PMDB, PSDB e outras siglas partidárias menos visíveis ensaiam publicamente o discurso da fuga. Ouvem-se as desculpas mais esfarrapadas, tais como: “caixa dois é diferente do crime puro e simples de corrupção” e “[a prática do caixa 2] é eticamente reprovável, mas não se confunde necessariamente com corrupção”.
Para espanto geral, a operação em curso para abafar as consequências negativas do envolvimento dos principais atores da política nacional conta com o solícito apoio público de membros da cúpula do Poder Judiciário. O polêmico, para dizer o mínimo, Ministro Gilmar Mendes, não só participa de viagens, reuniões e almoços com a fina flor dos mandatários envolvidos de corpo e alma com os mais variados e graves ilícitos penais como declara para a imprensa que “[o caixa 2] tem que ser desmistificado” e “vai ter que se fazer alguma coisa”.
E a “coisa” toma corpo. Sob o pomposo rótulo de “Reforma Política”, Temer, Maia, Eunício e Gilmar, entre centenas de outros nomes de escalões inferiores, buscam a “solução” para o financiamento passado e futuro das campanhas eleitorais. No cardápio de opções constam: a) “anistia” do caixa 1; b) anistia do caixa 2; c) inexigibilidade de conduta diversa; d) excludente de ilicitude e e) imunidade para toda e qualquer forma de financiamento eleitoral. Outras fórmulas serão bem recebidas. A criatividade jurídica eficiente para o malfeito nesse campo será muito bem recompensada, notadamente se for suficientemente ampla para abarcar os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
A sociedade civil organizada acompanha e denuncia as manobras evasivas urdidas nos porões fétidos da grande política nacional. Eis um emblemático exemplo: “Enquanto a população anseia pela punição severa de crimes cometidos pela classe política, na esteira da megainvestigação da Operação Lava Jato, membros do Congresso rumam na contramão do povo e tentam se salvar da maneira mais antirrepublicana, aprovando projetos e alterando legislações em vigor para salvar suas peles. Esta é uma das constatações do presidente da Associação Nacional de Peritos Criminais Federais (APCF), Marcos de Almeida Camargo, entidade que tem papel determinante na resolução de crimes em todas as esferas da administração pública” (http://goo.gl/9IzAR3).
PublicidadeEsses episódios grotescos se somam a outros tantos casos recentes. O eterno líder do Governo, Senador Romero Jucá, foi protagonista destas três pérolas: “Se acabar o foro, é para todo mundo. Suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada” (http://goo.gl/w8Xnyu), “Tem que resolver essa porra… Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria” (http://goo.gl/zcp2D5) e “Nós não vamos parar. Nós vamos trabalhar, vamos cumprir a nossa tarefa e vamos melhorar a vida dos brasileiros” (http://goo.gl/ufV6Cv).
O Primeiro-Ministro, Eliseu Padilha, não ficou atrás. “Em palestra para funcionários da Caixa Econômica Federal, o ministro Eliseu Padilha (Casa Civil) explicou o funcionamento da engrenagem fisiológica que permite ao governo de Michel Temer dispor de maioria no Congresso. Em timbre de galhofa, Padilha usou como exemplo o preenchimento do cargo de ministro da Saúde. Contou que, para obter o apoio do PP, descartou a nomeação de ‘um médico famoso de São Paulo’ para acomodar na poltrona o deputado Ricardo Barros (PP-PR), um engenheiro civil. (…) Padilha lembrou que, na composição da primeira equipe do governo Temer, havia uma decisão de nomear ministros notáveis em suas respectivas áreas. A pasta da Saúde seria do PP. Mas a legenda foi alertada para o desejo do presidente de ter na poltrona um profissional que fosse ‘distinguido’. ‘Aí nós ensaiamos uma conversa de convidar um médico famoso em São Paulo’, relatou o chefe da Casa Civil, sem mencionar o nome do doutor Raul Cutait./Segundo Padilha, o PP mandou um recado para Temer: ‘Diz para o presidente que o nosso notável é o deputado Ricardo Barros.’ Portador da mensagem, o ministro aconselhou o amigo a ceder ao partido, campeão no ranking de enrolados no escândalo da Petrobras. ‘Nós não temos alternativa’, disse Padilha a Temer, realçando que o objetivo do governo era obter 88% dos votos no Legislativo./’Vocês garantem todos os votos do partido em todas as votações?’, perguntou Padilha. E os representantes do PP: ‘Garantimos.’ O ministro diz ter encerrado a negociação nos seguintes termos: ‘Então, o Ricardo será o notável’“ (http://goo.gl/IOr6pC).
O que existe de comum nessas situações, como foi destacado na hipotética frase inicial de Odorico, é o menosprezo pela ética, pelo senso de ridículo e pela censura pública. Esses atores políticos nem coram para desdenhar escancaradamente do mais lídimo e crescente sentimento voltado para o saneamento radical dos costumes políticos no Brasil. Alguém, com o juízo no lugar, acredita nesta nota de Temer, Gilmar, Eunício e Maia: “Esse debate não busca apagar o passado, mas olhar com resolução para o futuro, construindo o sistema mais adequado aos tempos atuais e atendendo melhor aos desígnios de nossa democracia e às expectativas de nosso povo” (http://goo.gl/A9ZHyq)? Esses senhores estão sinceramente preocupados com a democracia e o povo?
Destaque-se que o caminho para a solução dos principais problemas brasileiros não passa por “salvadores da pátria” (algum iluminado pelos deuses ou “apolítico”, tipo Trump), produtos de marketing político-eleitoral (como foi Collor no passado ou Dória no presente) ou aprendizes de ditadores (como o caricato Jair Bolsonaro).
O único caminho factível, mesmo lento e trabalhoso, reside na intervenção popular (não confundir com a tresloucada intervenção militar). Somente a mobilização e conscientização populares, em torno de medidas efetivamente transformadoras, mudará o Brasil. Trata-se de atuação que não pode, nem deve, ser terceirizada (para representantes de qualquer tipo ou líderes “esclarecidos”). A força motriz das mudanças de fundo, sem prejuízo de combativos e comprometidos representantes e lideranças políticas como seus instrumentos, deve estar centrada na cidadania ativa, no protagonismo da atuação de cada cidadão nos mais variados espaços sociais.
É preciso ressaltar, ainda, que o mundo dos políticos vai para a vitrine dos horrores e, ao atrair todas as atenções e revoltas, deixa os interesses de fundo ocultos e protegidos. Para os monumentais interesses socioeconômicos responsáveis por poderosos mecanismos geradores de desigualdades e mazelas sociais de várias ordens é extremamente conveniente que a grande maioria da sociedade atribua seus problemas e dificuldades quase que exclusivamente aos vários tipos de corrupção protagonizados pelos agentes eleitos.
Essas últimas considerações, postas de forma mais abstrata, podem ser verificadas numa perspectiva mais concreta de um grande tema do momento. O parlamentar, financiado pelas empresas da área de previdência privada, votará com os interesses dos trabalhadores ou com os interesses dessas organizações? Observe-se que a Reforma da Previdência, profundamente polêmica quanto aos números envolvidos e visceralmente injusta nas medidas a serem implementadas, viabilizará uma atuação em grande escala das instituições financeiras privadas que: a) poderão administrar os fundos de previdência dos servidores públicos e b) contratarão planos com trabalhadores interessados em benefícios integrais (impraticáveis com as novas regras da previdência). E mais. Tomando como referência as palavras do Ministro-Chefe da Casa Civil, as bancadas da “base de sustentação” do governo participarão de um debate sério sobre a situação da previdência e as propostas a serem implementadas (quais e suas intensidades)? Ou, ao revés, trata-se de um jogo de cena porque os votos parlamentares já foram “comprados” na arena fisiológica do toma-lá-dá-cá? Nessa última linha, cabe perguntar: o governo Temer-Padilha-Meirelles utiliza o fisiologismo mais rasteiro como instrumento para proteger, defender e realizar os interesses populares (dos trabalhadores)?
“Deixando de lado os entretantos e indo direto aos finalmentes”, como dizia Odorico, na arena da grande política institucional de âmbito nacional, é preciso identificar a ligação entre interesses socioeconômicos, medidas transformadoras da realidade numa perspectiva democrática e popular e a atuação política voltada para implementar essas últimas. Decididamente, a ação política de cada cidadão, individual e coletivamente, precisa ir além, muito além, da execração, inclusive eleitoral, dos debochistas de plantão.