A comparação é descabida, sim. Mas e se o governo do Rio de Janeiro decidisse remover a estátua do Cristo Redentor do alto do Corcovado, onde reina desde sua inauguração em 1931, e ela fosse levada para outro morro, digamos, a pedra da Gávea, ali perto?
Sim, a comparação é descabida, repito, mas a ideia é mesmo chamar a atenção para um aspecto completamente negligenciado no ato igualmente descabido do novo presidente da Câmara, de retirar o Comitê de Imprensa do lugar que hoje ocupa, desde a inauguração do prédio do Congresso, bem ao lado do plenário, a fim de transferi-lo para um subsolo do plenário e assim poder instalar o próprio gabinete no local.
Com tal atitude, o deputado Arthur Lira pretende escapar dos jornalistas, esses seres inconvenientes que abordam os parlamentares quando esses atravessam o Salão Verde em direção aos seus gabinetes com perguntas desagradáveis.
Com o tempo, os lugares adquirem e guardam o gosto da história. O Brasil e o mundo se acostumaram a apreciar o Redentor no alto do Corcovado, desde aquele dia em que Guglielmo Marconi, pioneiro do rádio, acionou desde Roma a bateria de holofotes que iluminou a estátua pela primeira vez.
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A partir daí, com a pátina do tempo, o Cristo Redentor foi ganhando importância nacional e internacional. Passou por cima de credos e intolerâncias até se transformar numa das maravilhas do mundo moderno. O Comitê de Imprensa da Câmara está longe de ser uma maravilha em qualquer tempo. Mas o tempo deixou naquele espaço marcas definitivas, registradas na memória de quantos passaram e passam por ali.
É de ver-se a atitude quase reverencial dos turistas que o visitam, para ver de perto a azáfama dos responsáveis por levar ao Brasil e ao mundo as notícias políticas. Jornalistas de todos os veículos de imprensa que enviaram seus repórteres à nova capital, desde sua inauguração em 1960, que ali conviveram, ali trabalharam, ali ajudaram a construir a história do Brasil moderno, sob os eflúvios da modernidade da capital revolucionária, cujas curvas, produto da audácia e do delírio de Lúcio Costa e Niemeyer, até hoje assombram o mundo.
Por dois anos presidi aquele Comitê, na segunda metade dos anos 1980. Naquele tempo, além de espaço a abrigar jornalistas, o Comitê tinha uma enorme importância política. Ali convivi com grandes e inesquecíveis repórteres, comentaristas e cronistas políticos. Gente do naipe de Flamarion Mossri, Jorge Bastos Moreno, Rubem de Azevedo Lima, Tarcísio Hollanda, Clóvis Senna, Dário Macedo, Alfredo Obriziner, Leda Flora, Sônia Carneiro, João Emílio Falcão e tantos, tantos outros.
Vez por outra, até Carlos Castello Branco, o Castelinho, autor da Coluna do Castelo, o mais importante colunista político do país, que raramente ia ao Congresso, tinha saudade e passava por lá, para um café. Em plena ditadura, o Comitê exerceu o papel de protagonista nos embates com os governos militares. Dali acompanhamos – e reagimos no que era possível – às violências à democracia, como as cassações dos mandatos parlamentares.
Daquelas vidraças os jornalistas viram, atordoados, os tanques dos militares cercando o Congresso. Ali, fui testemunha do choro incontido de colegas diante dos atos ignominiosos do autoritarismo. E igualmente comemoramos emocionados momentos inesquecíveis como o dia em corremos ao plenário para ver e ouvir Tancredo Neves fazer um dos mais belos discursos, o de homenagem a Juscelino Kubitschek, recém-falecido. Ou quando também abalamos ao plenário para ver Ulysses Guimarães proclamar a Constituição Cidadã.
O posicionamento oficial que o Comitê de Imprensa adotou em diversas ocasiões serviu de combustível para incendiados discursos em plenário. Numa dessas vezes, juntamente com centenas de colegas que se uniram à nossa iniciativa, decidimos lançar um manifesto em favor das eleições diretas, cujo texto terminou publicado em diversos jornais e foi lido em plenário, sob aplausos calorosos.
Por ali passaram grandes e controvertidas figuras da vida política do Brasil, como Luís Carlos Prestes, numa de suas últimas viagens a Brasília. Ali, em plena ditadura, os jornalistas faziam uma vigília diuturna para manter acesa a chama da liberdade. Durante muito tempo, quando ainda não existia a TV Câmara, os chamados “repórteres de plenário” aguardavam a transcrição das notas taquigráficas em calhamaços de papel levados ao Comitê para redigirem suas matérias.
Um enorme escaninho com várias divisões, na parede de trás da sala, cada uma com o nome de um veículo de imprensa, recebia as laudas datilografadas, que eram buscadas por motoboys e levadas às redações, onde eram transcritas e transmitidas por telex às sedes dos principais veículos de imprensa do Brasil, como o Jornal do Brasil, a Tribuna da Imprensa, o Estado de Minas, o Correio da Manhã, o Correio do Povo e os que ainda hoje estão no batente, como o Estado de São Paulo, a Folha, O Globo e o Correio Braziliense, entre outros.
Quando assumi a presidência do Comitê, uma limpeza acabava de ser feita no local. E por pouco não foi parar na lixeira uma relíquia daqueles tempos heroicos. Ao perceber um servidor da limpeza carregando um cesto com as plaquetas que identificavam os escaninhos dos antigos veículos, inclusive de revistas que marcaram sua época como O Cruzeiro, Manchete, Visão e Fatos e Fotos, perguntei se podia me dar de presente aquele “lixo”. Ele riu e me deu. Guardo até hoje, com muito carinho, aquele pedaço do tempo que ia sumir para sempre. Pretendo doá-lo um dia a quem saiba dar àquelas plaquetinhas o valor que merecem.
Naquele tempo, com o ouvido nas caixas de som de cada mesa, de onde se acompanhavam os discursos, os jornalistas não apenas batucavam as notícias nas máquinas de escrever, ou gravavam nas cabines de áudio suas matérias e comentários. Também e principalmente, nas pausas de respiro, entre goles de café, trocavam ideias, argumentavam, formavam opinião, confrontavam pontos de vistas e, sobretudo… conviviam.
Até hoje aquele espaço está impregnado do ar puro da camaradagem e do calor das amizades que ali se criaram e se fortaleceram. Ali conspiramos contra os governos militares. Ali desenvolvemos estratégias para driblar a censura, como o jornal Cidade Livre, bancado pelo Sindicato dos Jornalistas, onde publicávamos as matérias vetadas pelos censores. Aquele Comitê tem história, tem cheiro e gosto de história.
O Brasil que lia e lê os jornais, que ouvia e ouve as rádios, que assistia e assiste aos noticiários da televisão e que acompanha atualmente as notícias em tempo real pelos sites e blogs sabe em primeira mão das posições e das opiniões de seus principais líderes políticos por causa da posição estratégica daquele Comitê no edifício do Congresso.
Ele não está ali por acaso. Quando Niemeyer decidiu que o Comitê ficaria exatamente ao lado do plenário, e não em um porão qualquer, estava dizendo, na linguagem da arquitetura, que a imprensa – os olhos do povo – tinha de ter um espaço privilegiado de onde pudesse acompanhar cada passo dos que decidem os destinos do país. Foi uma decisão bem próxima à que tomou quando desenhou aquelas duas torres do Congresso Nacional, as mais altas da cidade, como a proclamar que o poder mais alto é o poder… do povo.
Retirar o Comitê de Imprensa da Câmara do lugar que hoje ocupa, ao lado do Plenário, é atitude que guarda o ranço do mais abjeto autoritarismo. Até porque autoridades existem para ser entrevistadas, confrontadas, cobradas, exigidas. A proximidade do Comitê com o Plenário cumpre essa função. Se as autoridades preferem se esconder e não conseguem admitir que a prestação de contas à imprensa faz parte dos cargos que ocupam, então não são dignas de ocupá-los.
Os lugares guardam e preservam a história. E um pedaço grande da história do Brasil moderno passou por aquele Comitê. Não é saudosismo lutar pela sua preservação. É apenas um ato de respeito à história política do Brasil.
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