Bia Barbosa *
Depois de mais de seis meses congelado em função da troca na mesa de direção da Câmara dos Deputados, dos novos arranjos políticos estabelecidos no início do ano e de uma distribuição anulada a diferentes comissões de mérito da Casa, o PL 2630/20 – mais conhecido como “PL das Fake News” – volta de fato a ser discutido no Parlamento. Por decisão do presidente Arthur Lira, em vez de seguir o rito tradicional da Câmara, o projeto de lei foi delegado a um grupo de trabalho especialmente criado para analisá-lo.
Instalado no início de julho, sob a presidência da deputada Bruna Furlan (PSDB-SP) e com relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), o GT aprovou no último dia 16 um conjunto de requerimentos de audiências públicas. Mais de cem nomes foram apresentados pelos parlamentares integrantes do grupo e aprovados para serem ouvidos. A tarefa de organizar a discussão em eixos lógicos, que favoreçam o aprofundamento do debate, está a cargo do relator e será realizada durante o recesso parlamentar.
O rumo das discussões, entretanto, segue incerto. Em primeiro lugar, porque há mais de 60 projetos de lei apensados ao PL 2630, tratando dos mais diversos assuntos relacionados de alguma forma à desinformação ou regulação de plataformas digitais. Várias questões trazidas por esses PLs sequer foram objeto de discussão quando o PL 2630 passou pelo Senado, em maio e junho do ano passado, ou durante o ciclo de debates promovido pela Câmara dos Deputados logo na sequência.
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Se havia um certo direcionamento para a iniciativa no segundo semestre de 2020, quando o deputado Orlando Silva, que havia coordenado esse ciclo de debates, chegou a circular informalmente uma minuta de substitutivo para o texto, agora o cenário está totalmente aberto. Não só pelas dezenas de PLs que foram apensados ao texto, mas também porque a correlação de forças políticas dentro do Legislativo mudou. Neste contexto, não é possível saber se temas que tangenciaram a discussão sobre enfrentamento à desinformação no país – como a previsão de criação de um novo tipo penal para criminalizar determinadas condutas ou o estabelecimento de mecanismos de remuneração de empresas jornalísticas por parte das plataformas – voltarão à tona.
Tampouco é possível saber se medidas polêmicas propostas no PL conseguirão voltar com força à discussão, depois de terem sido muito criticadas num primeiro momento de análise do texto pela Câmara no ano passado. É o caso da chamada “rastreabilidade” nos aplicativos de mensagem instantânea, como o WhatsApp. Apresentada pelos autores do texto – senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP) – como um caminho para tentar identificar autores de fake news nesses aplicativos, a medida recebeu muitas críticas da comunidade técnica, de proteção de dados pessoais e até do relator da ONU para o direito à privacidade, Joseph Cannataci.
Na semana passada, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), órgão multissetorial do país, que tem como atribuições elaborar diretrizes para o uso e desenvolvimento da rede mundial de computadores, recomendando normas e procedimentos para a regulação de atividades inerentes à Internet no Brasil, manifestou preocupação com o tema. Em nota pública – a primeira do CGI.br que trata do mérito do PL –, o Comitê declarou ser necessário “ melhor examinar e compreender seus reflexos nas atividades dos consumidores”, diante de riscos para os direitos dos usuários que medidas como esta podem trazer.
Outros problemas do PL 2630
O CGI.br saudou o Congresso Nacional pela iniciativa de discutir problema tão relevante para o país e reconheceu que o PL traz avanços importantes, como os deveres de transparência por parte das redes sociais e serviços de mensageria privada. Porém, destacou que vários outros aspectos do projeto de lei, além do risco da rastreabilidade, requerem aprimoramentos.
O mais simbólico é a proposta de criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade, proposto no PL para ser o órgão responsável pelo acompanhamento das medidas de que tratará a futura lei. Pelo texto, o Conselho será vinculado ao Congresso Nacional, também terá composição multissetorial e, como uma de suas atribuições, a elaboração de um código de conduta para o funcionamento das redes sociais e aplicativos de mensageria – inspirado no que a Comissão Europeia implementou junto às grandes plataformas digitais em 2018.
Considerando que, “em princípio, tal acompanhamento estaria conforme às atribuições deste Comitê Gestor”, o CGI destacou em nota a importância de aprofundar essa discussão junto com os integrantes do grupo de trabalho e o conjunto dos parlamentares.
Moderação de conteúdo e o famigerado “novo decreto” do marco civil
Outro ponto apontado pelo CGI.br como necessário de aprimoramentos e longe de consenso entre os mais diferentes setores que mergulharam na discussão do enfrentamento à desinformação no país é a moderação de conteúdo feita pelas redes sociais. Sem dúvida, num contexto de controle cada vez maior por parte das big techs sobre o que circula ou não nas redes, o PL 2630 avança ao afirmar a necessidade de garantia do chamado devido processo, com notificação dos usuários sobre ações de moderação realizada sobre seus conteúdos, direito de apelação e reparação por moderações abusivas. Trata-se de medida fundamental para que a moderação privada, feita pelas empresas, deixe de incorrer no cerceamento de legítimos discursos e conteúdos – como vêm mostrando diversos estudos realizados pelo mundo sobre entraves à liberdade de expressão nas redes.
Por outro lado, é preciso que os deputados se debrucem com cuidado sobre o tema, para que, no importante esforço de regular essa questão, não acabem ampliando o já significativo poder das redes sociais na distribuição e fluxo de conteúdos e mensagens na internet ou, ainda, no sentido inverso, bloqueando a necessária moderação feita pelas plataformas.
É este, aliás, o objetivo da proposta de novo decreto regulamentador do Marco Civil da Internet (MCI) proposto pelo governo federal: impedir que as plataformas moderem conteúdos sem ordem judicial – salvo raríssimas exceções, como pedofilia, nudez ou apologia ao crime. Além de apontarem o texto como inconstitucional, por alterar o regime de responsabilidade das plataformas previsto em lei via decreto (instrumento ilegal para tanto), especialistas em Internet apontam que a medida deixará o caminho aberto para a distribuição de discursos de ódio e, justamente, desinformação.
Sim, por certo, trata-se de processos diferentes. Enquanto o decreto do MCI é discutido a portas fechadas na Esplanada dos Ministérios, o PL 2630 seguirá sendo escrutinado por todos os setores interessados e atingidos no âmbito do Legislativo, respeitando o jogo democrático prévio necessário ao estabelecimento de qualquer lei ou normativa no país – pelo menos é o que dita nossa Constituição. Mas engana-se quem acha que uma iniciativa não é influenciada pela outra, já que ambas poderão impactar – de maneira oposta – o processo eleitoral que se aproxima. Enquanto uma pode terminar por ampliando ainda mais a disseminação de fake news na internet, a outra visa justamente combater este fenômeno tão maléfico para nossa democracia.
Como participantes deste processo na representação de organizações da sociedade civil defensoras da liberdade de expressão e de um ambiente virtual que promova e respeite os direitos humanos, esperamos que a Câmara dos Deputados discuta com profundidade o projeto 2630. E aprove, sim, uma lei que estabeleça mecanismos efetivos para o enfrentamento à desinformação no país, mas sem colocar em risco direitos fundamentais dos usuários de internet.
* Bia Barbosa é jornalista, mestra em Políticas Públicas, representante do 3o setor no CGI.br e integrante do Intervozes.
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