Foi mais um rompante de homofobia do presidente Bolsonaro o episódio em que tomou guaraná Jesus, um refrigerante de cor rosa muito apreciado pelos maranhenses e comentou, rindo: “Agora eu virei boiola. Igual maranhense”. Todo preconceito é fruto de um processo cultural historicamente sedimentado, com bases assentadas numa tradição autoritária. É assim na homofobia, em que se enaltece a figura do macho em detrimento das demais denominações de gênero. Como na misoginia, com o rebaixamento da figura feminina.
Isoladamente, a manifestação nojenta do presidente permite inferir, em primeiro lugar, que o ataque não se limitou aos integrantes dos grupos LBGTI. Engloba toda a população nordestina, por ele enfeixada na expressão “paraíbas”, com a qual se referiu de forma pejorativa aos governadores de estados do nordeste. O termo “paraíba” teve sua origem na intensificação dos fluxos migratórios de nordestinos da Bahia para o Rio de Janeiro, e da Paraíba para São Paulo, a partir dos anos 1960, como aponta o professor de letras e sociolinguística Dante Luchesi, da Universidade Federal Fluminense. Nas duas cidades, as referências depreciativas aos nordestinos têm base numa pretensa supremacia intelectual e educacional do centro-sul em relação ao restante do país. Até hoje, no Rio de Janeiro, a manobra mal feita por um motorista é denominada de “baianada”.
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A “brincadeira” é a prova do preconceito
Para além do preconceito explícito do presidente, vislumbra-se nitidamente que ele não está minimamente preocupado com o bem-estar da população, mas o quanto significa em termos de votos para pavimentar seu projeto de reeleição. A desculpa à manifestação homofóbica, de que tudo não passou de uma “brincadeira” foi reforçada com mais duas derrapadas. Fez um gesto tradicionalmente usado para estereotipar a gesticulação dos homossexuais masculinos. Depois confessou que bebeu o guaraná, “mas não senti nada”. Vestindo uma camiseta do Sampaio Correia, tradicional equipe maranhense de futebol, volta-se para a ministra Tereza Cristina, que acabara de tomar um gole do guaraná e ordena: “fala grosso aí, fala grosso aí!” Dirige-se a uma pessoa negra da equipe de gravação que não aparece na live e usava uma camisa cor-de-rosa, para emendar uma manifestação racista: “Ei, negão, você tá com uma camisa cor-de-rosa aí! Tu tá pisando na bola, heim?” A pessoa negra diz ter ganho a camisa da esposa. Aí Bolsonaro fecha com chave de ouro – ou de esterco – a saraivada de ações do mais puro preconceito: “Ela tá botando fé em você ou não?”
Segundo o texto de abertura do projeto Centro de Análise do Preconceito e do Autoritarismo, “Práticas discriminatórias florescem em sociedades autoritárias. Tanto a discriminação quanto o autoritarismo estruturam-se por uma lógica de subordinação incondicional e desigualdade invencível: uns comandam, enquanto outros são comandados. A afinidade é também institucional: ao passo que políticas antidiscriminatórias dependem de aparatos voltados ao recebimento de denúncias, à fiscalização permanente e à punição de condutas discriminatórias, sociedades autoritárias são hostis a mecanismos de accountability. Com o avanço de governos de traços autoritários, nacionalistas e hostis a minorias em muitos países, políticas contra a discriminação perdem prioridade ou correm o risco de ser desmanteladas. Ao mesmo tempo, ganham espaço, na esfera pública, discursos intolerantes em relação a grupos protegidos e hostis a políticas antidiscriminatórias”.
Racismo e preconceito religioso
PublicidadeOs preconceitos estão profundamente arraigados na sociedade brasileira, que tem suas bases de governabilidade alicerçadas em conceitos autoritários. Estamos longe de superarmos a dicotomia Casa Grande x Senzala. O racismo estrutural denuncia diariamente o autoritarismo existente em sua base. O caso daquele homem que desacatou um entregador apontando para seu próprio braço branco (“vocês têm inveja é disso aqui, ó”) revela a verdadeira intenção por trás da frase e do gesto: afirmar, autoritariamente, uma suposta superioridade branca.
A lógica da base autoritária dos preconceitos também está na discriminação por motivação religiosa. Raras são as religiões que têm seu embasamento numa visão ecumênica ou mesmo na simples tolerância dos que professam crenças diferentes. Os atos de vandalismo e violência contra as religiões de matriz afro-brasileira, por exemplo, são a melhor prova disso. O preconceito remonta à época da colonização, quando as missões evangelizadoras não buscavam apenas a difusão do cristianismo, mas a supressão das crenças tradicionais tanto dos indígenas quanto, mais adiante, dos negros africanos escravizados.
O preconceito intelectual é visível no escárnio diário aos que se expressam mal no uso da língua portuguesa, e por isso são vistos autoritariamente e pejorativamente como cidadãos “de segunda”. Na mesma linha pode-se analisar o preconceito social de classes, baseado no poder aquisitivo e no padrão de vida. Karl Marx analisa a sociedade capitalista com base nesse preconceito, e a divide entre burguesia e proletariado, o primeiro, autoritariamente dominante; o segundo, o dominado, situação que justificaria a luta de classes. O preconceito social abriga aquelas pessoas que se sentem superiores a outras por disporem de mais bens e maior poder aquisitivo. O resto é a “plebe rude e ignara”, que, por essa condição, deveria estar a seu serviço.
Retórica de boteco
Bolsonaro assenta sua retórica de boteco em todas as formas de preconceito. Vamos lembrar algumas frases de fundo autoritário em que ele destila preconceito e discriminação:
“O índio está evoluindo, e cada vez é um ser humano igual a nós”.
“Tudo pequenininho aí?”, para um grupo de asiáticos, insinuando o órgão genital masculino.
“Eu tenho cinco filhos, quatro homens, na quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”.
“Fui num quilombo em Eldorado Paulista. Não fazem nada, não servem nem pra procriar”.
“Não empregaria homens e mulheres com o mesmo salário. Mas tem muita mulher que é competente”.
E se o leitor e a leitora acha que Bolsonaro merece a reprovação da maioria da população estão muito enganados. “Ele fala que nem a gente”, é o pensamento majoritário. Porque na raiz da formação social brasileira, esses preconceitos estão entranhados de tal forma que já se naturalizaram.
“Não é assim, negão?”
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