No dia 7 de março, comemora-se o Dia Nacional da Advocacia Pública. Neste mês, o Centro de Estudos da Anafe publica uma série especial de seis artigos, escritos por associados, para que a sociedade conheça um pouco mais sobre a importância e os desafios da Advocacia Pública.
Por meio do art. 1º da Lei nº 12.636, de 14 de maio de 2012, o dia 7 de março foi instituído como Dia Nacional da Advocacia Pública, função essencial à justiça, a ser comemorado anualmente, em todo o território nacional.
Além de comemorações, a passagem da data convida-nos à reflexão sobre o papel dos advogados públicos em meio a uma realidade político-social, marcada por extremismos, acirramento crescente de conflitos institucionais, judicialização exacerbada da vida e de políticas públicas, e debates em torno de uma “reforma administrativa”.
Como se sabe, encontra-se em tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020, conhecida como “Reforma Administrativa”, mas que, em boa verdade, deveria ser chamada de “Reforma do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis”. Em rigor, a PEC 32/2020 pouco trata de alterações concretas e significativas relativamente ao funcionamento da máquina pública. O apelido “Reforma Administrativa” não faz jus ao conteúdo da PEC 32/2020; trata-se, enfim, de metonímia pela qual se confunde o todo (a administração) pela parte (os servidores públicos civis), buscando adiar discussões mais meritórias sobre o práticas e procedimentos administrativos que reclamam aprimoramento.
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Esse texto, porém, não focará nos muitos e graves descaminhos técnicos da PEC 32/2020, já explicitados, por exemplo, na Nota Informativa nº 5.394/2020, produzida pela Consultoria Legislativa do Senado. Pretendo propor uma reflexão sobre aspectos do funcionamento do Estado brasileiro, não abordados pela PEC 32/2020, mas que mereceriam uma atenção maior por parte dos meios políticos e jurídicos.
Quando se estuda Teoria Geral do Processo já nos primeiros anos do curso de Direito, aprende-se que a jurisdição tem por característica básica a “substitutividade”. Na lição de Alexandre Freitas Câmara, “a jurisdição é uma função estatal exercida em razão da vedação à autotutela”. Assumimos que, em geral, não podemos fazer “justiça pelas próprias mãos”, de modo que precisamos de um órgão estatal que resolva sobre interesses juridicamente protegidos. Com a jurisdição dispensamos (substituímos) a atuação de contendores pela atuação de um órgão burocrático imparcial, daí a “substitutividade”.
PublicidadePorém, a jurisdição não é o meio exclusivo para a solução de conflitos intersubjetivos regidos pelo Direito. Há outras modalidades de solução de controvérsias que passam ao largo do Judiciário, destacando-se autocomposições e arbitragens, que concorrem para a pacificação social e para uma maior segurança jurídica assim como a via judicial.
Como apontei mais alongadamente em artigo publicado em 2013, “O interesse de agir em demandas previdenciárias”, em desenvolvimento da característica da substitutividade da jurisdição, entende-se que somente aquele que tem “interesse” pode pleitear, pela via judicial, a análise do mérito de determinada contenda. “Trata-se de explicitar a ideia de que o Judiciário só há de se preocupar com efetivos dramas humanos que não podem ou não foram satisfeitos espontaneamente no seio da sociedade”, disse na ocasião.
Porém, com certa frequência, a característica da substitutividade da Jurisdição e o interesse de agir são olvidados na prática judiciária, em decorrência de interpretações tribunalícias indevidas e extremamente alargadas a garantia da inafastabilidade da jurisdição constante do art. 5º, XXXV, da Constituição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Essas interpretações não consideram que, para o acionamento do Judiciário, é preciso que tenhamos ao menos “lesão ou ameaça a direito” já configurados na realidade jurídico-social. Com base nesse entendimento, a inafastabilidade da jurisdição não teria nenhum limite, de modo que seria legítimo acionar o Judiciário para dispor sobre conflitos intersubjetivos inexistentes ou sobre questões de natureza extrajurídica.
Por trás dessa compreensão alargada da inafastabilidade da jurisdição encontram-se crenças bastante ingênuas de que:
(1) não há justiça fora do processo judicial;
(2) juízes são dotados de onisciência e infalibilidade;
(3) o processo judicial é o meio adequado para solucionarmos todos os nossos problemas sociais;
(4) só juízes teriam isenção de ânimo para apreciar de modo imparcial conflitos intersubjetivos;
(5) a Administração Pública é essencialmente violadora de direitos dos particulares, de modo que nela não podemos confiar.
São incalculáveis os danos que esse tipo de postura gera para as relações sociais e para o funcionamento da Administração Pública propriamente dita. Sobre esses danos já tive oportunidade de discorrer mais detidamente no artigo “Assoberbamento judicial e esquecimento do interesse de agir”, oportunidade em que destaquei o caráter contraproducente dessas posturas: “tribunais devem investigar se, por força de uma compreensão desabrida de garantias como a inafastabilidade da jurisdição ou o ‘princípio do livre convencimento motivado’, estariam, ao mesmo tempo, desconsiderando o interesse de agir como pedra de toque para a justificação do processo, estimulando a litigiosidade de que tanto reclamam”.
Enfim, não é coerente sempre questionar o abarrotamento das varas e tribunais e, ao mesmo tempo, esquecer-se com frequência do interesse de agir e dar à inafastabilidade da jurisdição um conteúdo infinito.
Ocasionalmente, os tribunais reveem essa postura que potencializa a litigiosidade judicial, a exemplo do que se registrou durante o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 631.240, na sessão de 27 de agosto de 2014, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, a propósito de demandas previdenciárias contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que “não há como caracterizar lesão ou ameaça de lesão sem que tenha havido um prévio requerimento do segurado”.
Porém, o mesmo Tribunal, mais recentemente, em 9 de dezembro de 2020, decidiu que a Fazenda Pública não pode tomar a iniciativa de promover a indisponibilidade de bens de devedores de tributos extrajudicialmente, considerando que essa providência seria tipicamente judicial. Frustrou-se, com isso, um método mais expedido e eficaz de recebimento de créditos do Estado, muito embora o bloqueio, em si, não configure rigorosamente privação do bem vedada pelos termos estritos do disposto no inciso LIV do art. 5º da Constituição: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Feitos esses registros, acredito que poderíamos repensar seriamente, a título de uma reforma administrativa digna desse nome, os limites da inafastabilidade da jurisdição e a equação poder público-judiciário, a começar pela superação das crenças ingênuas de que a administração pública é invariavelmente vilã e o poder judiciário o mocinho, lembrando que há países democráticos como a França que, em função do sistema de contencioso administrativo, excluem mesmo de apreciação do Poder Judiciário certas modalidades de demandas.
Uma reforma administrativa que perpassasse por essas questões envolveria a aprovação de emendas à Constituição que, levando a sério a Teoria Geral do Processo, venham a aprofundar o caráter substitutivo da Jurisdição e a tratar o processo judicial como meio subsidiário para a solução de demandas e conflitos sociais que se classifiquem como jurídicos.
Com esses ajustes, por exemplo, poderíamos caminhar no sentido de proibir que se abram processos judiciais de improbidade administrativa contra servidores públicos sem que haja prévio requerimento administrativo do interessado para que a administração promova a responsabilização do agente faltoso, facultando-se o acionamento do Judiciário caso haja demora injustificada ou solução administrativa desfavorável ao denunciante interessado.
Nessa situação, a Advocacia Pública teria papel extremamente importante, pois, a partir de suas contribuições a título de consultoria e assessoramento jurídicos, contribuiria para uma decisão administrativa estritamente técnica, robusta e potencialmente mais convincente inclusive para o denunciante, que eventualmente pode ser persuadido da justeza da solução e nem acionaria o Judiciário em caso de decisão desfavorável. Em consequência, seriam dadas mais seriedade e relevância aos sistemas de controle interno da administração, que deixariam de ser vistos como desnecessários, subsidiários ou como rito deliberativo intermediário à prevalecente jurisdição.
Fundamentalmente, quando se privilegia a solução administrativa de conflitos intersubjetivos entre o particular e o Estado, contribui-se para o desfazimento do mito de que a administração pública é voltada a maltratar direitos alheios. Muitas vezes conflitos judiciais são instaurados desnecessariamente porque o particular não se deu ao trabalho ou não quis obter da administração pública uma explicação sobre determinada decisão que tomou. Potencializa-se o conflito, o dissenso e a desconfiança, em detrimento de um diálogo franco e informado que pode e deve ser instaurado entre o particular e o Estado, criando-se mais um fator a contribuir para a nossa época de extremismos.
Em termos mais amplos, poderíamos negar a prestação jurisdicional a quem, tendo alguma pretensão perante o poder público, venha a externá-la originalmente perante o Judiciário na forma de uma petição inicial. Do mesmo modo como se exige nas demandas judiciais previdenciárias ao menos prévio requerimento administrativo como condição para o conhecimento do mérito, podemos encaminhar no sentido de constitucionalizar a regra de que “não se prestará a jurisdição contra o Poder Público, sem prévio requerimento administrativo e demora procedimental injustificada ou decisão final desfavorável, não se exigindo esgotamento de recursos”.
Adicionalmente, poderíamos encaminhar no sentido de proibir a instauração de processos judiciais envolvendo exclusivamente entes públicos da mesma esfera da federação, estipulando que a solução definitiva para a situação conflituosa intraestatal deve ser buscada no âmbito administrativo, com participação decisiva da Advocacia Pública.
Podemos também trabalhar por constitucionalizar a possibilidade de a administração pública promover extrajudicialmente bloqueio de bens como forma de otimizar a satisfação dos créditos públicos, contribuindo para um melhor manejo pelo Judiciário do acervo atualmente invencível das Varas de Execução Fiscal.
Uma Reforma como essa envolveria grande mudança de mentalidades no meio jurídico, pois teríamos que nos desfazer de muitos mitos inconsistentes construídos por décadas em torno da inafastabilidade da jurisdição. Significaria, de um lado, um dos maiores fatores de desafogamento do Judiciário, favorecendo um reordenamento de distribuição de trabalhos que privilegiem a resolução de questões graves como as criminais, que não podem ser resolvidas de outras formas a não ser pelo processo judicial; e, de outro lado, significaria a exigência de mais seriedade e a atribuição mais responsabilidades à administração pública e à advocacia pública, com reordenamento substancial de força de trabalho no sentido do contencioso judicial para a consultoria administrativa.
Tudo isso contribuiria para acentuar a independência técnica da advocacia pública e para a construção de um ambiente administrativo cooperativo e dialogado com os órgãos internos de controle.
Uma reforma como essa não significaria a instauração no Brasil do contencioso administrativo do modelo francês, pois estipular que conflitos e demandas envolvendo o Poder Público sejam objeto de prévia deliberação administrativa como condição para a abertura de processos judiciais não significa excluir essas questões de apreciação do Judiciário.
Não se configuraria, portanto, violação à norma do inciso XXXV do art. 5º da Constituição, que é considerada cláusula pétrea. Semelhantemente, bloqueios extrajudiciais de bens promovidos pela Administração Pública, como não configuram privação deles, não significariam violação à cláusula pétrea do inciso LIV do art. 5º da Constituição.
Esse texto por óbvio não pretende concluir um debate que sequer foi iniciado de modo significativo. Ao revés, é um convite que faço aos meus colegas advogados públicos e à comunidade jurídica em geral à reflexão e ao debate que levam a ações políticas bem informadas e com maior legitimidade social. Essas conjecturas, que já podiam ser deduzidas de outros textos já publicados, são fruto sobretudo de minha experiência de aproximadamente dez anos como advogado público.
Durante esse tempo fui percebendo que há um grande mal-estar institucional decorrente de um desbalanceamento da equação Administração/Judiciário, que infelizmente vem se agravando nesse nosso tempo de extremismos. Um mal-estar que não é só meu, mas de boa parte do mundo do Direito. Muito precisa ser reformulado no nosso ambiente jurídico, e a Advocacia Pública nessa reformulação tem um papel fundamental.
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