No dia 7 de março, comemora-se o Dia Nacional da Advocacia Pública. Neste mês, o Centro de Estudos da Anafe publica uma série especial de seis artigos, escritos por associados, para que a sociedade conheça um pouco mais sobre a importância e os desafios da Advocacia Pública.
A Constituição Federal de 1988 ao separar o exercício da procuratura¹ dos interesses estatais das atribuições do Ministério Público deu ensejo à conformação própria e especial da Advocacia Pública² como autêntica função essencial à justiça.
A partir daí, portanto, a relevante função de advogar preventiva e combativamente os interesses públicos titularizados nas competências dos Entes Públicos passou a ser missão exclusiva da Advocacia Pública. Dessa forma, os artigos. 131 e 132 da Constituição cidadã de 1988 previram a Advocacia Pública como uma dentre as funções essenciais à justiça. Essa constatação já demonstra que a sua localização fora de quaisquer dos Poderes da República³, significa afirmar que se trata de instituição constitucional à parte, cuja missão constitucional é representar o Estado brasileiro na esfera dos interesses públicos primários e secundários cometidos aos diversos entes estatais, políticos e administrativos [4].
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Por outro lado, mais recentemente, a partir de justa mobilização dos membros das carreiras da Advocacia Pública federal composta por Procuradores federais, Advogados da União, Procuradores da fazenda nacional e Procuradores do Banco Central do Brasil, foi editada a Lei 13.327/2016 na qual foram textualmente incorporadas importantes prerrogativas da advocacia pública federal previstas nos artigos 37 e 38 da lei, a exemplo de normas sobre responsabilização dos advogados públicos, respeito à intimação pessoal e prerrogativas de tratamento já outorgadas anteriormente a outras funções essenciais à justiça.
Prerrogativas que asseguram uma atuação séria, independente de pressões políticas e voltada ao interesse maior do Estado, prover a sociedade com direitos fundamentais e serviços públicos.
No entanto, apesar dos importantes avanços alcançados, a advocacia pública federal ressente-se com a falta de garantia elementar que assegure aos seus integrantes atuarem com carga de trabalho adequada que lhe permita tutelar os interesses públicos estatais de maneira adequada e eficiente.
PublicidadeSobre ser um direito básico de todo trabalhador, ao ser colocado no cenário de atuação dos advogados públicos o assunto ganha requintes de tragédia porque coloca em risco os mais fundamentais interesses públicos que se inserem nas competências dos entes estatais e não raras vezes dependem da atuação do advogado público para sua consecução [5].
Basta perceber que o advogado público, ao contrário do privado, não pode escolher casos ou clientes, estando sujeito a uma carga processual cada vez maior e com alta responsabilidade porque lida com recursos e interesses públicos. Esse conjunto de fatores é gatilho perfeito para disparar inúmeros distúrbios e doenças mentais ou comportamentais, além de colocar em riscos os interesses do Estado.
Estudos apontam que 22,6% dos afastamentos de servidores públicos são ocasionados por doenças como ansiedade e estresse grave. Na área jurídica, a situação é ainda pior, com 60% das licenças médicas ocasionadas por transtornos mentais e comportamentais. Na raiz desse problema é recorrente a queixa quanto ao volume ou excesso de trabalho [6].
A partir daí, a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais – Anafe associação que congrega perto de 4 mil advogados públicos federais, lançou, recentemente, o projeto “Jornada Exaustiva” que tem por objetivo diagnosticar sob que condições de trabalho estão sujeitos os advogados públicos federais. O projeto tem por objetivo, ainda, agir para combater a jornada excessiva de trabalho [7].
Isto porque, se de um lado é certo que os advogados públicos não estão sujeitos a controle de ponto [8] para o exercício de suas funções porque os interesses públicos colocados em juízo ou submetidos à atuação extrajudicial do advogado público não estão sujeito à delimitação através de controle de ponto [9], por outro lado, essa realidade tem infligido aos advogados públicos a submissão a carga de trabalho excessiva, sem qualquer apoio ou suporte de pessoal que lhe venha permitir uma atuação qualificada e com a preservação de sua saúde física e mental.
Tudo agravado ainda mais pela pandemia da covid-19 que estimulou e acelerou a realização do teletrabalho, a partir de quando os advogados públicos passaram a concentrar, além do aumento de trabalho, o encargo de manter toda a estrutura de trabalho e atuação da advocacia pública, inclusive no tocante ao aumento de gastos de energia, internet de qualidade, equipamento e mobiliário, entre outros custos e atividades que passaram a se concentrar na pessoa do procurador.
É preciso lembrar que as prerrogativas do serviço público, além de não serem uma benesse ou um favor, são garantias e instrumentos para proporcionar um serviço público eficiente, de qualidade, estável e juridicamente válido. Logo se vê que as prerrogativas vêm ao encontro de prover um serviço público de qualidade para a sociedade.
No que se refere ao combate à jornada exaustiva, trata-se de mal que afeta na raiz a capacidade de reação do Estado aos desafios impostos à advocacia pública.
Dando contornos ao tema da jornada exaustiva, Alexander Santana identifica que jornada exaustiva ocorre “quando o trabalhador é submetido, de forma sistemática, a um esforço excessivo, com tal sobrecarga de trabalho e sem tempo suficiente para se recuperar física, mental e emocionalmente, de tal modo que pode vir a ter danos à sua saúde. A exigência de horas de trabalho em excesso nega à pessoa o direito de trabalhar de forma a proteger sua saúde, garantir o descanso e permitir o convívio social. A jornada exaustiva tem relação com o ritmo de trabalho imposto, quer seja pela exigência de produtividade acima da capacidade humana, quer seja pela indução ao esgotamento físico, mental e emocional, como forma de prevenir-se de sanções [10]”.
Essa situação já chegou a ser apontada pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão 564/2006, Processo 013181/2004-4 [11], no qual o Tribunal, ao detectar a excessiva carga de trabalho imposta aos procuradores federais, concluiu que a carga de processos por procurador federal deve ser compatível com suas atribuições legais.
Como se pode perceber, a falta de atenção ao problema aliado à ausência de critérios para um diagnóstico objetivo e a completa carência de suporte e apoio aos advogados públicos acaba por criar o que Santana denomina de “espiral do silêncio e do medo”, com efeitos negativos graves para o interesse público (sociedade) e para a saúde dos membros da advocacia pública [12].
Assim, o problema da jornada excessiva atinge diretamente as prerrogativas do advogado, inclusive do advogado público uma vez que ao impor ao advogado um volume de trabalho incompatível com sua jornada, a administração da AGU está a tolher-lhe a independência e violar-lhe, portanto, uma prerrogativa essencial para que consiga realizar seu trabalho a contento [13].
Tentativas de automatização da atividade jurídica embora possam ajudar no combate à jornada excessiva, precariza a atividade da advocacia do Estado, estimulando o uso de peças-padrão e pouco atentas aos contornos fáticos distintivos do caso dificultando a capacidade intelectual de inovação jurídica inerente ao exercício da advocacia.
Igualmente, iniciativas de premiar improvisos e esforços sobre-humanos sem atentar para a falta de estrutura de apoio para quem exerce a atividade finalística da advocacia pública é um lamentável equívoco que normaliza a sobrecarga a que estão submetidos os procuradores públicos [14].
Daí porque a própria garantia de carga de trabalho adequada, com suporte e apoio mínimos, como a criação de carreira de apoio especializada, se constitui, por si, de garantia institucional da Advocacia Pública, além de ser também uma prerrogativa do advogado público no mister de defender os interesses do Estado, os quais, em última análise, são interesses da sociedade.
Torna-se, assim, premente a construção de um método de jurimetria da carga de trabalho dos advogados públicos que lhes permitam aferir se estão sujeitos a carga excessiva de trabalho, buscando proporcionar meios de combate a essa mazela a qual, como visto, a um só tempo, implode a estável e eficiente atuação estatal e detona a saúde do advogado público. Um método que envolva os advogados públicos que lidam diretamente com a demanda que sobrecarrega os órgãos da advocacia pública.
A partir disso, é preciso conceber a garantia da carga adequada de trabalho como prerrogativa em favor do interesse público tutelado pela atuação dos advogados públicos, no que beneficia toda a sociedade, mas, ao mesmo tempo, deve ser considerada como prerrogativa própria do profissional, naquilo que toca à sua realização como advogado que executa trabalho intelectual técnico-jurídico e à sua saúde.
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¹ Diogo de Figueiredo Moreira Neto possui seminal artigo científico que denomina de procuraturas constitucionais as funções essenciais à justiça (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à justiça e as procuraturas constitucionais. Revista de informação legislativa, a. 29, n 116, 1992, p.79-102).
² Com expressa vedação aos membros do ministério público, conforme art.129, IX da Constituição Federal.
³ Nesse sentido, válida a remissão feita pelo Ministro do STF, Celso de Mello, sobre a doutrina de Tomás Pará Filho ao aludir que o “procurador do Estado é, e deve ser, órgão de colaboração e representação, fora do ordenamento estritamente burocrático. Sua atividade corresponde, tão só, à advocacia preventiva e ativa em prol do Estado”. (In voto do ministro Celso de Mello no informativo 743, Brasília, 21 a 25 de abril de 2014. In http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo743.htm) destaque nosso. Acesso em 19 mar 2021.
4 Extraída do artigo de autoria do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto sobre a responsabilidade do advogado de estado (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A responsabilidade do advogado de estado. Disponível em: http://download.rj.gov.br/documentos/10112/168750/DLFE29276.pdf/rev630305ResponsabilidadeAdvogadoEstado.pdf) Acesso em 19 mar 2021).
5 Cite-se como exemplo atuação dos advogados federais na viabilizaram o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, leilões de petróleo, ações para defesa do meio ambiente, etc.
6 Segundo levantamento recente que consta do NUP 00696.000113/2019-42 do sistema de processos (sapiens) da Advocacia Geral da União, as Cids que mais se destacaram na carreira de Procurador Federal foram às relacionadas a transtornos psicológicos (Cid f) e dorsopatias (Cid M50-4). No que toca à saúde mental, temos o seguinte quadro: 1.Ano de 2016: 71 membros com licença para tratamento da própria saúde por motivo de depressão, transtornos neuróticos, transtornos relacionados ao “stress” e transtornos psicossomático, o que gerou o total de 3.612 dias de afastamento no ano; 2.Ano de 2017: 98 membros com licença para tratamento da própria saúde por motivo de depressão, transtornos neuróticos, transtornos relacionados ao “stress” e transtornos psicossomático, o que gerou o total de 4.610 dias de afastamento no ano; 3.No ano de 2018, 95 membros, integrantes da carreira de Procurador Federal, estiveram afastados em razão de licença para tratamento da própria saúde por motivo de depressão, transtornos neuróticos, transtornos relacionados ao “stress” e transtornos psicossomático, o que gerou o total de 5.170 dias de afastamento no ano.
7 https://anafenacional.org.br/anafe-lanca-mapeamento-de-jornadas-exaustivas-e-demais-violacoes-de-prerrogativas/
8 Conselho Federal da OAB, o qual editou, ainda em 2012, Súmula de de seguinte teor: Súmula 9 – O controle de ponto é incompatível com as atividades do Advogado Público, cuja atividade intelectual exige flexibilidade de horário (OAB-SP. Conselho Federal lança súmulas de proteção à advocacia pública. Disponível em: https://www.oabsp.org.br/noticias/2012/11/13/8350#:~:text=S%C3%BAmula%209%20%2D%20O%20controle%20de,insertos%20no%20Estatuto%20da%20OAB. Acessos em 20 mar 2021.
9 Na advocacia pública federal foi editada em 2009 a Portaria Interministerial AGU/MF/BACEN nº 19 de 02/06/2009 que estabeleceu controle por registro de atividade e não por ponto de chegada ou saída (NORMAS BRASIL. Portaria Interministerial AGU/MF/BACEN nº 19 de 02/06/2009. Disponível em: https://www.normasbrasil.com.br/norma/portaria-interministerial-19-2009_212618.html#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20o%20registro%20das,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em 20 mar 2021.
10 SANTANA, Alexander. Contexto da Proposta de Trabalho para a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais. jan, 2021.
11 TRIBUNAL DE CONSTAS DA UNIÃO (TCU). Acórdão 564/2006 – PLENÁRIO, relator Ubiratan Aguiar, Processo 013.181/2004-4, data da sessão 19/04/2006. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/013181%252F2004-4/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/1/%2520 . Acesso em 20 mar 2021.
12 Isso quer dizer que na falta de critérios objetivos para aferir a sobrecarga de trabalho o procurador que venha a responder a um processo disciplinar por falta ocasionada pelo excesso de trabalho somente consegue se eximir se boa parte dos colegas do acusado também tiverem cometido falhas em razão do excesso de processos. Isso gera a ocultação do problema e provoca medo nos procuradores. (SANTANA, 2021).
13 Ibidem.
14 Sobre esse tema é importante a referência ao texto recém publicado de Rocha e Montardo que critica a política de governança da PGF a qual ignora dificuldades estruturais e a sobrecarga de trabalho legitimando improvisos tortos e assimetrias odiosas que não focam na origem do problema: sobrecarga de trabalho. (DA ROCHA, Lademir Gomes; MONTARDO, Sérgio Augusto da Rosa. Governança institucional da Procuradoria-Geral Federal: discricionariedade excessiva e oportunidades assimétricas, jan, 2021. Disponível em: https://anafenacional.org.br/wp-content/uploads/2021/01/GOVERNAN%C3%87A-INSTITUCIONAL-DA-PROCURADORIA-GERAL-FEDERAL.pdf . Acesso em 20 mar 2021.
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