Não surpreende que o Direito à Memória e à Verdade gere tanta polêmica no Brasil e no mundo. A própria aprovação da Comissão Nacional da Verdade já nascera com décadas de atraso. Parecia que éramos personagens do genial escritor português José Saramago, quando, em seu imperdível livro Ensaio sobre a cegueira, afirmara que “o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”. Afinal, éramos a única nação sul-americana vitimada por ditadura militar na segunda metade do século passado a não conhecer os detalhes de sua própria História. A Argentina, por exemplo, chegara a encarcerar ex-presidentes da república, sem que isso abalasse a democracia. O Chile, ao não fazê-lo em tempo, viu-se exposto ao vexame de uma providência externa, com a prisão, por crime contra a humanidade, em Londres, do ex-ditador Augusto Pinochet, a pedido do juiz espanhol Baltazar Garzón, aceito pelo juiz inglês Nicholas Evans.
Por essas razões, a OAB – quando tive a honra de presidi-la – ajuizou, junto ao Supremo Tribunal Federal, ação para que os arquivos da ditadura não permanecessem secretos, seguida de outra, perante o Superior Tribunal Militar, para apurar denúncias de que esses arquivos estavam sendo queimados e destruídos. Pretendia-se, com isso, tirar o tema da mera discussão conceitual e dar-lhe conteúdo jurídico, fazendo com que a nação o discutisse objetivamente e lhe desse consequência prática. O Brasil precisava livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da História as suas abjeções. Precisava entender que um povo que não conhece o seu passado estará condenado a repeti-lo. Não se buscava, na época, uma frase de efeito, mas se pretendia uma realidade objetiva, que nos obrigava a lutar para o país soubesse, em detalhes, o que lhe aconteceu durante a ditadura militar.
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Não mais queríamos a lógica do medo. O medo de exprimir o mais simples dos pensamentos. O medo de ser denunciado por apenas ler um livro ou gostar de determinada música. O medo até de dizer que se tinha medo. E quem superava o medo era trancafiado em um desses calabouços oficiais que escondiam um envergonhado submundo de torturas, prisões clandestinas e “desaparecidos” escondidos pela própria máquina estatal. Era o tempo do compulsório “amar” ou deixar o país. Era o tempo em que o presidente constitucionalmente eleito fora derrubado, o Congresso Nacional fechado, parlamentares cassados, eleições diretas fulminadas, e governadores e senadores biônicos a nos representar. Era o tempo em que o Poder Judiciário estava castrado na sua missão de livre decidir, violado na sua independência, desrespeitado em suas prerrogativas, humilhado com a cassação dos Ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima. Era o tempo da censura, das perseguições políticas e da revogação do habeas corpus.
Participei da solenidade de assinatura da lei que criara a Comissão Nacional da Verdade. Sabíamos todos que aquele histórico dia era o resultado um ardoroso debate no seio da sociedade. Era o fruto, dentre outros da mesma safra, da recusa de brasileiros em aceitar a política do silêncio, do inconformismo pelo julgamento que perdoara os torturadores e da esperança pela decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenara o Brasil pela inatividade em relação aos crimes praticados durante a chamada Guerra do Araguaia. No próprio ato, a presidenta Dilma Roussef assinara a Lei de Acesso aos Documentos Públicos. Naquela solenidade lembrei-me do sociólogo, escritor, filósofo e historiador estadunidense, ativista pelos direitos civis dos negros dos EUA Willian Du Bois, quando certa vez disse que “existe apenas um covarde, o covarde que não ousa saber”. Naquele histórico dia, o Brasil ousava saber.
Repetíamos, aqui, o episódio que foi conhecido na Alemanha como Historikerstreit, quando se rejeitou a proposta de silêncio defendida por Ernst Nolte, Hillgruber e Sturmer, fazendo vencedora a tese de Habermas que defendia o confronto aberto com o passado, reconhecendo o Holocausto e punindo os nazistas. Agora não mais teríamos em solo brasileiro a amnésia imposta como sinônimo de anistia. Saberíamos, finalmente, quem torturara Frei Tito de Alencar e tantos outros que ficara com corpo tão violentado que somente sobrava o “desejo de perder os sentidos”. Conheceríamos aqueles que, camuflados nos porões escuros da ditadura, ainda permaneciam longe da luz da democracia. E, finalmente, teríamos noticias daqueles que desapareceram por acreditar no ideal democrático.
Mas eis que surge, no seio da recém-criada Comissão Nacional da Verdade a proposta de se admitir o silêncio público em forma de depoimentos secretos dos agentes que cometeram crimes contra a humanidade. Embora fundada na bem intencionada alegação de que se poderia colher novas provas, os depoimentos secretos confrontam o espírito que fizera nascer a própria Comissão. Conhecer a verdade é incompatível com a prática de atos sigilosos, mesmo porque, como bem lembrou a Associação Nacional de História (Declaração de Dezembro de 2004), “os direitos à informação e à memória constituem na sociedade democrática contemporânea, direitos civis, políticos e sociais”.
E não se saberá destes importantes detalhes caso os depoimentos dos agentes que cometeram crimes contra a humanidade permaneçam secretos e desconhecidos do público. Caso esta prática permaneça, a Comissão Nacional da Verdade perderá a sua principal função, assim como a Lei de Acesso às informações públicas. Nesta toada, é preciso lembrar Vladimir Herzog, quando ensinou que “quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”. Desvendar e se indignar com o passado é compreender o presente. Escrever o presente é antecipar o futuro. Afinal, não se pode repetir o tempo em que medo era servido na mesa do brasileiro.
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