Dizem que conversar sobre a educação dos filhos, ainda mais quando o palco da discussão é um animado barzinho, é exageradamente brega ou coisa de velho. Eu confesso que sou useiro e vezeiro nesse tipo de assunto, até porque compreendo que educar é compartilhar tarefas, inclusive com aqueles que têm e vivem os mesmos conflitos e/ou alegrias. Compartilho agora uma polêmica questão que, numa destas noitadas de discussão, disputou com os aperitivos as nossas maiores atenções.
O assunto por nós consumido era referente à crescente e bárbara exploração sexual de crianças e adolescentes, principalmente envolvendo autoridades que deveriam zelar para que fossem protegidos. O assunto nos foi servido em função do Dia de Combate à Exploração Infantil. O pretexto do debate uma pequena criança que implorava para que dela fosse comprada uma das rosas que vendia.
Realmente era intrigante a proposição, pois aparentemente não se poderia enxergar qualquer vício no pequeno gesto de uma criança que nos vende uma flor, acalentando o já gostoso clima noturno. Essa foi, aliás, a nossa primeira reação, mesmo porque a criança estaria nos ofertando um dos símbolos do amor, permitindo-nos compartilhar esse gesto com a pessoa amada que estivesse ao nosso lado. Além do mais, com a compra, estaríamos praticando um gesto de solidariedade e, de quebra, adocicando a nossa consciência, que ficaria livre dos remorsos por estarmos nos divertindo enquanto uma criança trabalha em plena noite.
Porém, foi este último argumento que nos fez refletir, certamente sendo o objetivo do cartaz, pois provocou as seguintes indagações: o que justifica estar uma criança trabalhando em plena noite, encontrando-se, sem qualquer proteção, com boêmios e bêbados, nem todos solvendo boas intenções? Não seria a flor que ofertamos à pessoa amada, por amor ou para amenizar a consciência, também a moeda que expõe e mantém crianças trabalhando na noite? Não estaria a flor, embora com a possibilidade de amolecer o coração da pessoa amada, endurecendo o nosso próprio coração?
E o que é pior, mantendo-a em um ambiente de trabalho que poderá, em uma noite qualquer, pelo desespero da fome criminosa de um desses pedófilos da vida, ser estuprada no que lhe resta de dignidade física e moral. Longe dos olhos protetores da família, perto dos pervertidos olhos do seu algoz, não é imaginar qual será o olhar vencedor. As esquinas das ruas mostram muito bem o placar desse perverso jogo.
A noite fornece à prostituição infantil, sem muito esforço, um verdadeiro exército de crianças e adolescentes carentes à sua disposição, e o que é melhor para esses exploradores, já em contato direto com o público consumidor. A chamada e popular expressão juntar a fome com a vontade de comer teria aí um grande exemplo, pouco importando se a comida fornecida é indigesta, imoral ou criminosa. Eis então a conclusão de nosso debate: percebermos que nós, cidadãos comuns, temos também a nossa parcela de culpa.
Realmente sabemos que a noite não é um lugar para criança, tanto é que evitamos que nossos filhos se tornem seu frequentador assíduo, ainda que acompanhados de confiáveis amigos. Se aquela criança fosse um de nossos filhos, não estaria ali naquela hora, trabalhando ou implorando um pouco de atenção. Mesmo porque, para nós, a expressão a noite é uma criança tem como público alvo os adultos, os adúlteros, os boêmios e os amantes da vida.
No entanto, não desenvolvemos o mesmo raciocínio quando se trata das crianças e adolescentes que perambulam pela noite. Nada fazemos para ajudá-las, salvo comprando a flor que a mantém como uma rosa a ser posteriormente colhida pelo jardineiro da exploração infantil. E são várias as formas em que podemos ajudar, pois são tantas instituições sérias que trabalham com a inclusão social precisando de parceiros e voluntários, ainda que para receber um simples alô.
E a nossa omissão não fica apenas adormecida pelo efeito da noite, ela também cochila acomodada durante o dia. Afinal, quem já denunciou ou proibiu que várias crianças e adolescentes, convertidas em empregadas domésticas, sejam violentadas pelos patrões ou seus ávidos filhos, para descobrir os prazeres do sexo? Quem já denunciou um pai que estupra uma filha, um religioso que atenta contra um pequeno fiel, um vizinho que violenta o filho?
São essas omissões, noturnas ou diurnas, que estimulam e fazem avançar a exploração e a violência contra crianças e adolescentes. Aliás, sequer atraem a revolta da nação, como acontece quando um assalto faz vítima um filho da classe média, rendendo Ibope até em cenas das telenovelas. As Cidades do Crack somente causam comoção geral porque se tornaram epidemia, podendo causar doença em qualquer um dos munícipes.
A noite não é uma criança
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