O Brasil e a humanidade enfrentam quatro grandes problemas. São eles: a) uma profunda crise ambiental; b) a aceleração das abissais desigualdades socioeconômicas; c) uma enorme financeirização parasitária da atividade econômica onde convivem poderosas corporações transnacionais e Estados nacionais relativamente impotentes e d) a erosão dos valores democráticos e dos direitos humanos, considerada a crise da democracia representativa tradicional e a abordagem mais ampla e moderna que reconhece os direitos da natureza. É justamente a superação dessas mazelas que permitirá a construção de uma sociedade livre, justa e sustentável.
O primeiro dos problemas destacados pode ser observado na forma como importantes atividades econômicas são realizadas e as dramáticas consequências das escolhas efetivadas. Vejamos alguns registros marcantes nesse sentido. Eles integram vários dos capítulos do meu livro “Saúde e Bem-estar. Minhas anotações”, com lançamento pela Literando Editora previsto para o mês de maio de 2022.
A maioria dos alimentos processados são verdadeiras “bombas químicas” com ingredientes oriundos, em boa parte, de grandes petroquímicas e fábricas de químicos básicos (conservantes, acidulantes, aromatizantes, corantes, solventes, emulsificantes, realçadores de sabor, etc). Uma pergunta, portanto, é inevitável. Como o organismo humano reage a esses coquetéis preparados pela indústria? Não é preciso muito esforço para compreender que o corpo responde negativamente a quase todos esses elementos (os danos não são experimentados imediatamente, é bom frisar).
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A produção industrial em larga escala chegou às plantações. Esse modelo dominante de produção de alimentos vegetais envolve uma série de agressões à saúde e ao meio ambiente./A agricultura, em ritmo crescente, é dominada por corporações imensas com atuação internacional. Prosperam monoculturas gigantescas (algodão, açúcar, café, chá, cacau, milho, soja, etc), altamente mecanizadas e voltadas para a geração de commodities freneticamente negociadas no mercado (nacional e mundial)./Essa agricultura moderna lança mão de adubos ou fertilizantes químicos em quantidade claramente excessiva. Esses produtos são profundamente acidificadores do solo e biocidas (destruidores da microvida do terreno agricultável). Ademais, desenvolvem vegetais menos saborosos e com teor nutritivo empobrecido. Ao serem levados pelas águas das chuvas e das irrigações, poluem rios e lençóis freáticos. Por evaporação, parte deles (os nitrogenados) afeta a camada de ozônio./Uma das características da agricultura moderna consiste no uso intensivo de agrotóxicos (também conhecidos como defensivos agrícolas, pesticidas ou agroquímicos). São substâncias químicas sintéticas, tóxicas e venenosas, usadas para eliminar pragas, insetos, bactérias, fungos e outras plantas. Os agrotóxicos poluem o solo e as águas causando, ainda, desequilíbrios na fauna e na flora. Eles permanecem nos alimentos mesmo depois de lavados e a ingestão contínua provoca distúrbios e doenças. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) mostram que o Brasil é o maior consumidor mundial desses produtos desde 2008.
A pecuária moderna (ou intensiva) causa profundos dados ambientais. Os principais problemas decorrem: a) de desmatamentos e queimadas para abrir espaço para pastagens (calcula-se que 75% do desmate na Amazônia e 56% do desmate no Cerrado estão relacionados com a pecuária); b) do metano expelido nos gases dos ruminantes que tem forte impacto atmosférico (de acordo com várias pesquisas, vacas produzem 150 bilhões de litros de metano por dia); c) do elevadíssimo consumo de água (a produção de um quilo de soja gasta 500 litros de água, já a produção de um quilo de carne bovina requer 15 mil litros de água) e d) da contaminação por resíduos ou dejetos (uma exploração agrícola com cerca de 2,5 mil vacas leiteiras produz a mesma quantidade de excrementos que uma cidade de 411 mil pessoas).
A pesca deixou de ser uma atividade artesanal, quase romântica. “As velas do Mucuripe/Vão sair para pescar”, da música de Fagner e Belchior, não representam o quadro econômico dominante desse setor. Na atualidade, prevalece a pesca em escala industrial e a sobrepesca como sua faceta particularmente perversa./A sobrepesca (ou pesca predatória), segundo várias análises consistentes, reduz as populações de peixes para além de sua capacidade de reprodução. O problema possui escala global. Calcula-se que aproximadamente 70% das espécies de peixes dos mares estão submetidos a uma exploração não sustentável./A chamada pesca predatória envolve vários procedimentos condenáveis, tais como: a) uso de explosivos; b) uso de redes de grande extensão; c) realização em épocas proibidas e de reprodução e d) captura de animais considerados em risco de extinção. A utilização de redes de arrasto, em especial, implica na captura de filhotes, espécies indesejadas e mesmo vegetação marinha. O potencial de desorganização dos ecossistemas é enorme.
As atividades referidas são importantíssimos braços da atividade econômica no âmbito do sistema socioeconômico capitalista na sua atual etapa financeira e monopolista. A lógica fundamental do sistema, bem identificada nas práticas das indústrias destacadas, é a acumulação frenética, contra tudo e contra todos, dos maiores lucros possíveis. A saúde das pessoas, o cuidado com o meio ambiente e o tratamento decente para com os animais, em suma, os mais caros valores morais e civilizatórios, são aspectos claramente secundários. Tudo se transforma em mercadoria, a ser comprada e vendida no mercado para gerar um contínuo acúmulo de riquezas nas mãos de poucos, muito poucos.
Como foi visto anteriormente, não se trata de uma batalha de “ismos” (capitalismo, liberalismo, socialismo, etc). Não se trata de mero discurso ideológico de condenação do atual modo de produção econômica. A realidade (a dura e crua realidade) funciona como a verdadeira “régua” acerca da correta compreensão da forma de organização da sociedade. Os fatos objetivos bem demonstram o modus operandi e os objetivos efetivamente perseguidos nas complexas relações sociais.
A atual etapa da história da Terra, marcada por transformações planetárias decorrentes das atividades econômicas humanas, em áreas como o clima, a biodiversidade, a paisagem vegetal, o regime de águas e até mesmo elementos geológicos, recebe a designação de Antropoceno.
A extrema gravidade da ameaça trazida pelo aquecimento global definiu, para inúmeros movimentos da sociedade civil, organizações e governos, o chamado estado de emergência climática. São propostas, nesse contexto, entre outras medidas: a) a adoção de providências para reduzir as emissões de carbono a zero; b) o abandono dos combustíveis fósseis e a implementação de energias renováveis e limpas; c) a reciclagem de lixo; d) o combate ao desmatamento e o reflorestamento e e) a atenção para várias formas de poluição, em especial dos oceanos.
Não custa lembrar a existência de um virtual consenso no sentido de que um aquecimento de quatro graus celsius será o suficiente para gerar um considerável desarranjo no sistema climático global. Projeta-se: a) um clima instável e imprevisível marcado por ondas de calor e picos de frio extremo; b) a perda de extensas áreas férteis; c) o aumento sensível do nível do mar com o deslocamento de centenas de milhões de pessoas; d) a extinção de um grande número de espécies e e) a degradação de importantes ecossistemas. Um colapso irreversível, em escala planetária, figura como uma possibilidade e, cada vez com mais ênfase, uma probabilidade.
Os dados mais recentes são, ao mesmo tempo, preocupantes e animadores. O Painel de Mudanças Climáticas da ONU divulgou, recentemente, que o “… clima está mudando mais rápido do que se antecipava e os efeitos são piores do que se supunha”. “Na era industrial, a temperatura global subiu 1,1°C. A ONU estima que, se as emissões de carbono forem zeradas até 2050, há 50% de chance de mantê-la em 1,5°C – meta do Acordo de Paris. Se forem zeradas até 2070, há 50% de chance de mantê-la em 2°C./São metas improváveis. As emissões precisariam atingir o seu pico até 2025 e cair 43% até 2030. Até 2050, o consumo de carvão precisaria cair 95%; petróleo, 60%; e gás, 45%./Há notícias positivas. O crescimento das emissões continua, mas na última década a média anual desacelerou de 2,1% para 1,3%. Os preços de energias verdes despencaram: solar e bateria de lítio caíram 85%; eólica, 55%” (fonte: estadao.com.br).
A crise ambiental e a necessidade de sustentabilidade das atividades econômicas, de forma responsável, sem alarmismos e terrorismos, enfrenta um poderoso inimigo: o negacionismo climático. Trata-se de uma das mais fortes vertentes do negacionismo político presente na condução de vários governos, a exemplo do (des)governo Bolsonaro no Brasil.
O (des)governo Bolsonaro, na área ambiental, assim como em várias áreas sociais e culturais, mostra uma de suas faces mais perversas. Aposta no negacionismo mais obtuso e realiza um desmonte, em várias perspectivas, dos órgãos e políticas públicas voltados para essa área crucial. Apenas os dados do aumento das queimadas e desmatamentos na região da Amazônia Legal de 2019 a 2021 já são emblemáticos. Não é de se espantar a crescente repulsa internacional em relação à pessoa do (des)governante, ao (des)governo e, infelizmente, ao próprio país.
Nesse triste contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou, no dia 30 de março de 2022, o julgamento da chamada “pauta verde”. O também chamado “pacote verde” envolve o seguinte conjunto de ações de controle concentrado de constitucionalidade: a) ADPF 760 (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia — PPCDAm); b) ADPF 735 (Operação Verde Brasil 2); c) ADPF 651 (Fundo Nacional do Meio Ambiente); d) ADO 54 (omissão do governo federal no combate ao desmatamento); e) ADO 59 (Fundo Amazônia); f) ADI 6.148 (Resolução Conama 491/2018 sobre padrões de qualidade do ar) e f) ADI 6.808 (MP 1.040/2021, convertida na Lei 14.195/2021, sobre a concessão automática de licença ambiental).
A propositura dessas ações contou com uma ampla articulação de entidades da sociedade civil e partidos políticos progressistas. Vale registrar que a maior parte das iniciativas foi manejada pela REDE SUSTENTABILIDADE. Assim, a REDE confirma sua posição de organização indispensável na cena política brasileira ao afirmar, pelo menos, duas questões civilizatórias absolutamente estratégicas: a) a ideia de sustentabilidade e b) o enfrentamento enérgico da crise climática.
As primeiras manifestações do STF são animadoras, confirmando os importantes acertos do tribunal na defesa da democracia e do Estado socioambiental de Direito brasileiro, uma das vertentes do Estado Democrático de Direito. Com efeito, o voto da Ministra Cármen Lúcia, como relatora da ADPF 760, consiste numa: a) contundente demonstração da pertinência das enormes preocupações levadas ao STF porque admitiu expressamente a insuficiência e ineficiência das políticas ambientais adotadas pelo (des)governo Bolsonaro e b) corajosa e avançada construção jurídica alinhada com os valores e princípios constitucionais nessa seara.
Deve ser saudado e sublinhado que a ministra relatora da ADPF 760 reconheceu, no Brasil, a existência de um quadro estrutural de ofensa massiva, generalizada e sistemática do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado com efeitos irreversíveis sobre todos os seres humanos, desta e das futuras gerações, causando impacto sobre o direito à saúde e à vida de número indeterminado de pessoas, incluídas as populações indígenas, afetando ecossistemas inteiros, os animais, a qualidade do ar, o solo e os recursos hídricos e minerais. Essa foi a base para a declaração do denominado estado de coisas inconstitucional.
Espera-se, agora, que pedidos de vistas, notadamente na ADPF 760, não promovam um adiamento excessivo no desfecho do julgamento. Afinal, urge a inversão da tresloucada lógica do negacionismo ambiental no Brasil com a efetiva implementação de planos de ações com “cronogramas, metas, objetivos, prazos, projeção de resultados com datas e indicadores esperados”.
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