Da mesma forma que infecções denunciam problemas de saúde, crises denunciam problemas institucionais. Embora sempre tenha tido atribuições da mais alta relevância, só recentemente o Inep adquiriu visibilidade nacional, especialmente a partir do Enem, já que esse exame interessa diretamente à classe média. Não é por acaso que a erupção da crise ocorre no momento de realização do Enem.
Um pouco de história, antes de avançar. A equipe que assumiu o comando do Ministério da Educação no governo Temer denunciou a existência de um “aparelhamento” no Ministério da Educação. Nunca soubemos exatamente do que se tratava – na época falou-se até de uma sala secreta a que as autoridades não teriam acesso. Mas nunca mais se falou no tema. Portanto, o país ficou sem saber como era o aparelhamento e se o MEC foi desaparelhado.
Quem conhece um pouco de História e de administração pública sabe que há determinados órgãos que são especialmente cobiçados por grupos que entendem ser fundamental o controle do aparelho do estado para a consecução de seus objetivos. As formas de chegar lá são as mais variadas possíveis, mas, tipicamente começam pelo controle dos exames de ingresso. Redações e provas orais são especialmente cobiçadas, pois deixam maior margem de discrição para avaliar os futuros funcionários. A capacidade de refinar os critérios é infindável. Atualmente, em alguns meios acadêmicos norte-americanos, até mesmo os autores citados num artigo científico são avaliados para atestar se o cientista está sendo politicamente correto. Segredos de polichinelo. E daí?
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Daí que estamos falando de algo muito mais profundo do que apenas uma divergência de estilo ou orientação de uma determinada gestão. É possível que a atual administração do MEC tenha dedicado um esforço especial para controlar os conteúdos do Enem. Mas também é possível que as gestões anteriores não tenham sequer se preocupado em exercer esses controles, nos tempos em que o Enemestava sob o controle… de quem? Esta é a pergunta relevante.
Não existe saída fácil para guerras ideológicas, que sempre existiram e existirão. Max Weber descreveu o surgimento de um modelo de burocracia que evitaria alguns desmandos do monarca de plantão. Outro mecanismo próprio das democracias reside na possibilidade de alternância de poder. A sucessão do mando teria forte poder de dissuasão: se eu exagerar na dose hoje, meus sucessores poderão fazer o mesmo amanhã. O poder de dissuasão conteria os “impulsos mais selvagens”. Ou não. Poderia dar lugar ao “vamos aproveitar hoje e amanhã veremos”.
Historicamente, as controvérsias ideológicas em torno do Enem se concentram em duas questões. A primeira delas se refere ao uso de situações-problema e de textos, nos testes objetivos, cuja linguagem é objeto de divergências e preferências – para alguns muitas vezes se trata até de uma questão de mau-gosto. Esta, a meu ver, é uma questão não-trivial, mas relativamente menos grave e de mais fácil solução. A outra é mais complexa – tem a ver com os temas de redação. No Brasil, a escolha dos temas de redação sofre de dois vieses. O que parece incomodar mais a alguns grupos é o viés ideológico, a própria escolha dos temas. O outro viés é a opção por um único tipo de redação – o tipo argumentativo. Queremos que os jovens desenvolvam pontos de vista e saibam argumentar. Maravilha. Mas certamente este não deveria ser o único tipo de redação a ser ensinado e aprendido. Isso é grave.
Mas há um problema ainda mais grave: os temas requerem que jovens de 16/17 anos estejam preparados para resolver graves e complexos problemas sociais nacionais ou mundiais. Isso reflete um profundo desconhecimento do desenvolvimento cognitivo e do que significa “resolver problemas”. Isso reforça a tendência – que começa cedo, no ensino brasileiro – de levar os alunos a se preocupar mais em ter opinião própria sobre tudo do que efetivamente aprender e compreender o que está num texto e o que nossos antepassados nos legaram até aqui na história, nas artes e nas ciências. Aí mora o perigo.
Voltemos à crise do Inep. O que fazer? Na maioria dos países que usam exames dessa natureza, a descentralização predomina: há diversas instituições que elaboram e implementam os exames. Rarissimamente os testes são idênticos para todos e muito mais raramente ainda são elaborados pelos governos nacionais. É esdrúxulo – e perigoso – uma agência governamental elaborar testes, especialmente em regime de monopólio. Há instrumentos estatísticos e mecanismos que permitem comparar e calibrar diferentes testes. Há experiência e conhecimentos avançados de logística que permitiriam diferentes formas de pluralidade e descentralização.
Enquanto o Inep permanecer como juiz, bandeirinha, dono da bola e dono do time, ele estará sujeito a crises intermináveis. Um bom governo é um governo enxuto e que só faz aquilo que só o governo pode fazer. Uma boa democracia se faz com pluralismo – inclusive para elaborar e implementar testes.
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