O tempo de reconstruir o mundo e revirar a vida chegou, mesmo sem ser convidado. Trouxe com ele aquele “sei que nada será como antes”, antecipado por Milton, e os amigos avisam que os planos mudaram porque, afinal, a vida mudou, até os cumprimentos são outros e já soa estranho largar um “tudo bem?” nos encontros virtuais.
Cinco meses em quarentena, acabo esta semana com um buraco imenso e previsível no peito, a sensação de que o mundo não gira, ele capota, como diz minha amiga Roberta. A metáfora que me surge é a de um imenso acidente de carro, com muita gente presa nas ferragens, enquanto os bombeiros apenas falam, divergem e pouco fazem. Por que isso aconteceu? Por que viajavam por aqui? A culpa deve ser do motorista da semana passada: ele que não colocou óleo no freio. E, enquanto isso, as pessoas morrem. Voltando à realidade, tudo é bem pior. Digo, enquanto isso 100 mil pessoas morrem.
No Brasil, os debates que mobilizam a opinião pública se tornam irrelevantes em relação ao que uma emergência pública como esta nos exige: alinhar forças para sobreviver ao naufrágio e remar juntos em direção à praia. Ou, desenhando para quem gosta de linguagem militar, se não é tratada com seriedade, qualquer guerra já nasce perdida.
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Hoje apesar de um governo federal militarizado, seguimos travando essa dura batalha sem generais, com comandos contraditórios, ordenamentos confusos. A responsabilidade de um Estado varia de acordo com suas leis nacionais, mas invariavelmente se caracteriza pela prerrogativa de decidir sobre quem vive e quem morre em seus territórios.
No Brasil tais decisões são orientadas pela Constituição Federal que, para tal, determina que os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, embora independentes, devam funcionar em harmonia. Todavia, não é isso que os indicadores nacionais apontam, segundo o recém publicado Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a implementação da Agenda 2030 no país. A análise de 145 das 169 metas das 17 áreas de desenvolvimento sustentável, elaborada por 105 especialistas mostra que o contextos sociais, econômicos e ambientais do país passaram de precários (em 2017) a caóticos, ainda antes da covid-19.
Quase cem mil mortes depois da instalação da pandemia no Brasil e com o número de novos casos evoluindo, a quarta edição do Relatório Luz do GT Agenda 2030, mostra que já tínhamos um país retorcido pelas desigualdades, frágil, pronto para ser conquistado pela covid-19. Não é por acaso que aqui a pandemia se esbalda enquanto governos inconsequentes estimulam as pessoas a seguirem nas ruas.
The economy must go on, escrevem, como se, por decreto, fosse possível controlar a disseminação do vírus. Serão estes decretos, por exemplo, a única proteção de crianças e adolescentes obrigados à voltarem às aulas? Não, sabemos que não, mas assim caminha a desumanidade por aqui: porque ignoram a ciência seguimos, todos e todas, vulneráveis, com maior risco de vivermos uma morte horrível. Aliás, você já viu o que a covid-19 faz em um pulmão, por exemplo? Pois é, quem já viu sabe que não enfrentamos um inimigo qualquer, que comparações nada ajudam. Não se trata de gripezinha e tampouco de um HIV (o discurso da moda, agora) que, se globalmente ainda mata quase um milhão de pessoas todo ano, ao menos tem medicação adequada.
Em um país sob ataque viral, mas comando central, todas as outras instâncias decisórias são chamadas a agir para que, articuladamente, alinhem as políticas públicas, os sistemas de governança e as estruturas de poder e controle. Elas são convocadas a nos guiar no front de batalha, não a guerrear entre si. O resultado é que hoje temos que responder ao vírus e lidar com o desgoverno nacional, ou seja, precisamos cobrir dois flancos ao mesmo tempo sem forças para cuidar bem de nenhum deles. A derrota, por ora só anunciada, será certa se, ao invés de focar em redefinir estratégias, tomadores/as de decisão continuarem presos ao passado (de quem é a culpa? Por que chegamos aqui?) ou a um futuro completamente imprevisível, como o das eleições majoritárias de 2022. Muitas águas rolarão até lá mas, agora, as pessoas estão presas nas ferragens, não há tempo a perder.
Ou, não deveria haver tempo a perder. Lamentavelmente, enquanto as lideranças democráticas (ou que assim se autoproclamam) e os três Poderes da República se engalfinham, o presente é dominado pelo caos, as decisões tardam e, mesmo quando finalmente tomadas, demoram a se concretizar nos territórios, a alcançar quem deveriam. Num cenário como esse, é óbvia a incapacidade da gestão pública em responder ao conjunto de crises postas, particularmente à da pandemia. No caso do governo federal, que deveria ser o centro articulador de respostas, nem mesmo a operacionalização de ações essenciais básicas, questões de vida e morte para milhões de brasileiros/as – como a execução completa do crédito suplementar ao SUS, ou a provisão da ajuda emergencial a quem mais necessita e tem direito – ele consegue fazer ou se empenha em fazer corretamente.
Mas se diagnóstico de que o país inteiro colapsa está feito, contra dados não há argumentos, apenas más intenções. Não havia pior hora para uma pandemia tão letal chegar ao país, mas se esse não será evento de rápida passagem, pelo menos que não o prolonguem desnecessariamente, seja por irresponsabilidade ou incompetência. Sem mudanças na condução nacional, o colapso das políticas públicas será inevitável, com toda a população afetada. Solidariamente vale lembrar que se tem um lugar onde todas as classes sociais se encontram é na dor de perder um ente querido. O que digo, obviamente, não é uma praga, é simples constatação científica. A mesma que me permite afirmar que se os mais ricos estão morrendo menos, isso não se deve à covid-19 e sim às profundas desigualdades que sufocam o país. Mas, enquanto isso, o governo federal se concentra em produzir novas crises, desarticular políticas e orçamentos, esvaziar os órgãos de fiscalização, fechar espaços de participação social e restringir o acesso aos sistemas de informações existentes.
Essa realidade tão cruelmente cristalina, que o mundo inteiro observa, já não cabe mais sob o tapete: deu tempo de aprender que governantes do ódio, das armas, da tortura, da violência, da misoginia, do fogo nas florestas, do escárnio internacional, das fake news, não sabem e não saberão jamais cuidar da gente, porque cuidar é verbo de amor e disso eles nada entendem.
A pandemia também ensinou que, se “nada será como antes”, o amanhã exige redesenhar planos, rever estratégias e focar nas soluções. Sim, porque para tudo há solução, exceto para a morte. Cem mil mortes depois, precisamos fazer diferente e podemos fazê-lo, se tivermos governos comprometidos em vencer a covid-19 e nos guiar à paz, se as instituições da República assumirem suas posições com a responsabilidade que tantos fronts exige.
Estamos em guerra e precisamos de um país que funcione, que reaja. Mas como vencer a covid-19 se justo o Parlamento, com seus quase cinquenta tons de cinza, se alia ao maior inimigo que o Estado (de direito) brasileiro já enfrentou e empurra com força o joelho na garganta da nossa Constituição?
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