Após toda a dramaticidade dos dias e horas que antecederam a prisão do ex-presidente Lula, a narrativa parece ter mudado de tom e de gênero. Nas últimas semanas, temos assistido a uma série de fatos que beiram ao ridículo e à comédia nonsense: troca de nomes de parlamentares, confusões acerca do mundo árabe, invasões relâmpagos, visitas frustradas, etc. Tudo muito prosaico se lembrarmos das ameaças de mortes, guerra civil e insurreição popular profetizadas pelos apoiadores do líder petista; e também tudo muito natural, um exercício do inalienável jus esperneandi – o direito de espernear.
Pode-se censurar apenas o fato de que tais cenas de humor involuntário sejam os lances de protagonismo do maior partido de esquerda do Brasil a poucos meses da eleição. A impressão que se tem é de que o destino do país – abatido pela série recente de desastres políticos e econômicos – tornou-se secundário diante da situação pessoal do ex-presidente. André Singer já havia mostrado que o lulismo era bem maior do que o petismo; mas agora é como se Lula tivesse se tornado mais importante do que o próprio país.
As paixões equivocadas
A despeito dos possíveis ganhos que essa estratégia petista possa render, parece haver um algo a mais nessa atitude, que escapa ao campo exclusivo dos cálculos políticos-eleitorais. Parece ser algo da ordem do que o filósofo francês renascentista Michel de Montaigne (1533-1592), seguindo o estilo da época, denominou assim: “como a alma descarrega suas paixões sobre objetos falsos, quando os verdadeiros lhe faltam”.
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Em um dos capítulos de sua obra magna, Ensaios, Montaigne nos descreve a tendência que temos de nos enganarmos na ausência de um objetivo claro e definido a seguir. Nesses casos, ele nos diz, passamos a buscar por algo a que culpar e contra o que agir: “que causas não inventamos para as desgraças que nos afligem? A quem ou a que, com razão ou sem ela, não culpamos a fim de ter algo contra que nos havermos”, indaga.
Nessa situação, cometem-se os mais disparatados desvarios. Montaigne cita o caso do rei que, arrebatado pela dor, arranca com as mãos sua barba e seus cabelos, como se isso fosse capaz de aplacar o luto. Outro monarca, julgando-se castigado por Deus, obrigou todo o reino a se abster de rezar ou mesmo pronunciar o nome do criador do universo por 10 anos como vingança. Ele lembra ainda o caso do imperador romano Calígula, que, em seu tempo, mandou destruir um palácio só porque fora ali que sua mãe experimentara um desgosto.
PublicidadeAuto-engano
Montaigne nos ajuda a pensar que o PT, ao adiar a escolha de seu candidato e do modo como irá apresentar-se nas eleições, razão principal da sua existência, acaba se perdendo nessa série de atos constrangedores em protesto contra a prisão de Lula. Mas, seguindo as palavras do filósofo francês, podemos indagar ainda: será que todo esse esperneio não é apenas o meio que a alma petista encontrou de não ter que admitir que seus próprios erros foram a causa de tanta desgraça?
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