Racismo ambiental é uma das formas de materialização do racismo estrutural, tão bem definido pelo filósofo e advogado Silvio de Almeida em sua obra. Trata-se do exercício do poder por meio da retirada de direitos de grupos humanos nos territórios que ocupam. Comunidades são vulnerabilizadas, deslocadas, expulsas, submetidas a condições insalubres.
Moradores são assassinados, subjugados por violência, com base em sua origem étnica. Esta forma de racismo é operada, por exemplo, por meio de legislação e aplicação da lei, constrangimentos, exposição a resíduos tóxicos, venenos e poluentes, depreciação dos conhecimentos ancestrais e desqualificação dos valores consolidados através das gerações, para interagir nos territórios. Trata-se de epistemicídio e é um processo histórico.
A exploração dos corpos, territórios, saberes, tecnologias e riquezas das nações da África Subsaariana, durante quase mil anos por povos muçulmanos, a divisão da África e da Ásia na Conferência de Berlim, o tratado de Tordesilhas, a escravidão, a Guerra Fria e o Apartheid na África do Sul, são alguns dos processos históricos em que o exercício do racismo ambiental foi relevante nas estratégias de usurpação da riqueza material, espiritual e intelectual de povos específicos. Assim, foi determinante na estruturação do patriarcalismo, na consolidação universal da convivência com todas as formas de racismo, na hierarquização dos grupos humanos e na estruturação do capitalismo.
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Se a humanidade criou, produziu, organizou e banalizou o racismo, o Brasil certamente o aperfeiçoou e o reesculpe todos os dias. Um marco significativo foi a imposição estratégica da falsa democracia racial. A economia ancorada na comercialização de commodities constitui-se em referência para o discurso que justifica a invasão e a tomada de territórios indígenas e negros , por artifícios que vão das emboscada, assassinatos e invasões, aos desastres sociotécnicos, decisões de instâncias da justiça e ações de órgãos do Estado. Isso com maquiagem de normalidade, perversa apropriação da vida humana e da Natureza, sob a máscara da retórica de desenvolvimento sustentável.
Que sustentabilidade ? A sustentabilidade unicamente do capital, por certo. O racismo, que estrutura as relações sociais, forma os imaginários e torna até mesmo o genocídio legítimo, é de fato uma ideologia, a mais universal e longeva de todas. Ademais, a tomada de corpos e mentes soma-se ao sequestro das riquezas ecossistêmicas, identidade e dignidade em sua operação no ambiente. Para negros e indígenas, o interesse maior não é na riqueza material gerada pelo que oferece a Natureza, explorada como bens e commodities, mas o espaço de vida, a produção de alimentos, a relação com o sagrado, com a ancestralidade e o convívio em suas redes de afeto, disputas internas e trocas, o que se pode definir como bem viver.
A prática da injustiça ambiental é operada com desenvoltura em relação a negros e indígenas na exclusão do planejamento de serviços como saneamento e acesso a água potável, na liberação de grandes projetos em seus espaços de vida, na ruptura de pactos consensuados como em Termos de Ajuste de Conduta e, descaradamente, com participação de setores do judiciário na retirada até de direitos constitucionalizados. Exemplos há muitos, em todo o território nacional.
Observe-se o território quilombola de Macacos, parcialmente ocupado pela Base Naval de Aratu, da Marinha, com acesso limitado. É cotidianamente submetida a pressão ameaças e mesmo assassinatos de líderes. Há as violações de direitos à comunidade negra de Aurizona, na Amazônia Maranhense, operadas pela maior mineradora de ouro no Brasil, a canadense Equinox Gold. Ainda, relevante é a implantação de unidades de preservação e territórios de comunidades quilombolas ou outras tradicionais, que cuidavam da Natureza com sabedoria herdada dos antepassados. Podem-se observar reduções , por atualização de demarcações, de matas de comunidades religiosas de matrizes africanas ou políticas públicas de negação de infraestrutura a territórios, sejam eles bairros e outras comunidades como favelas ou em bairros de indígenas desaldeados em áreas urbanas.
Dona Geralda, Maria Geralda Bento, mineira, 8 filhos, 17 netos, 21 bisnetos, nascida em 6 de abril de 1933, acordou uma madrugada com sua casa, sua vida e sua vida soterradas por lama. Era de 5 para 6 de novembro de 2015 e o cheiro nauseante e ruinas foi o cenário da manhã seguinte. Gesteira, em Barra Longa, tornou-se uma terra arrasada de mortos vivos, pessoas deprimidas e deslocadas à força. Um dos filhos foi levado, sozinho, para uma casa distante. Lá morreu, em sofrimento.
Dona Geralda ouviu da Samarco, responsável pela ruptura da Barragem de Fundão, por meio da Fundação Renova, criada para operar as reparações, que teria uma casa. Abriu processo na justiça, viu casas das pessoas mais abastadas da comunidade reformadas com qualidade, cansou de esperar e faleceu em 20 de fevereiro de 2019. Antes, presenciou, entretanto, caminhões levarem rejeitos para as áreas de lazer e onde viviam seus parentes, morro acima, onde a lama não havia chegado.
Necroengenharia. Necroengenharia é a denominação que atribuo, referenciada no conceito de necropolítica do filósofo Achille Mbembe, àquela que desconsidera a vida, que opera a morte da Natureza e de humanos, que leva resíduos com contaminantes para cima de morro, que opera o racismo ambiental ao não aplicar as soluções tecnológicas viáveis, como retirar lama de leitos de rios ou construir casas para pessoas atingidas no tempo em que a tecnologia possibilita. Nega os resultados científicos e subestima os conhecimentos dos povos locais, no exercício do racismo estrutural.
No caso da lama com resíduos tóxicos, o impacto direto e decorrente do colapso da barragem de Fundão foi nas margens do Rio do Carmo, onde vivem as famílias tradicionais de Barra Longa. Parte da lama foi, entretanto, transportada para os territórios acima do rio, morros não inicialmente impactados, onde vive a maioria negra. Solo, ar e água foram contaminados, além do aumento de temperatura do solo. Este aumento causa redução de possibilidades produtivas e impacta no aquecimento global. Também, pode aumentar o desconforto térmico. Um dia antes da ruptura, como mostra o mapa. O cenário era bem diferente do que se apresenta após a catástrofe. Racismo ambiental operado por necroengenharia.
Segundo o jurista e intelectual afro-americano Robert Bullard, reconhecido como o pai da justiça ambiental, nenhum desastre é natural, todos têm antecedentes, são construídos. O racismo ambiental frequentemente os desenha, como se consolidada e ganha novas dimensões, expandindo-se após os impactos iniciais. Entretanto, as riquezas dos territórios, sejam minerais – inclusive água, ecossistêmicas e cênicas, situação vantajosa para a especulação imobiliária, e outras, motivam diversas estratégias de deslocamento forçado. Assim foi, no caso do maior desastre ambiental do Brasil, que na bacia do Rio Doce devastou as cobiçadas terras ocupadas por negros, indígenas e ribeirinhos, rica em minérios e que oferece possibilidades de escoamento de riquezas minerárias pelo porto de Ubu, no Espírito Santo.
Trata-se de história que teve início em 1808 nesta parte do Planeta, com 200 anos de guerra do império com os povos indígenas do grupo linguístico macro-jê, à época ofensivamente chamados botocudos. Interesses permanentes das corporações defendidos por forças de segurança, agentes do judiciário, operadores de políticas públicas e de setores normativos, além de fiscais do Estado. Os métodos são os mesmos, desde a ocupação do Saara por grupos mulçumanos: genocídio, feminicídio, epistemicídio e deslocamento compulsório para arresto dos territórios. Consumam-se com destruição das redes de vida locais e construção de opinião pública favorável com inverdades sobre a legitimidade do processo. Afinal, negro é humano? Indígenas e outros povos originários são gente?
O Brasil tem normas, leis, dispositivos constitucionais, é signatário de Acordos e Convenções e mesmo recebeu advertências e recomendações de órgãos multilaterais. Entretanto, a definição de ocupação territórios, os processos de reparação, deslocamentos forçados, oferta de políticas públicas, exposição a riscos, são conduzidos com base no racismo individual, interpessoal e institucional, que integram o racismo estrutural. Parte do pressuposto é que a decisão cabe absolutamente a quem exerce o poder de fato e, portanto, define o que é desenvolvimento e a quem deve privilegiar. Neste sentido, a submissão imposta, sem possibilidade de intervenção por parte das vítimas do racismo ambiental, associam-se a acordos subordinados às corporações. Operadores do Estado atendem a interesses econômicos dos setores que exploram a Natureza sem limites. Somam-se à omissão e defesa dos interesses permanentes defendidos nos legislativos e à conivência dos poderes locais, além de corrupção. Consolida-se, outrossim, o monopólio predatório territorial da nação, a entrega dos ecossistemas. Consolida-se um desastre ambiental, cujo preço a ser pago pelo conjunto social é incalculável, no presente e no futuro. Racismo ambiental, portanto, não se encerra em si. No entanto, este é assunto para outro artigo.
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