A palavra aporofobia é tão nova que o Word ainda não a reconhece, mas reflete algo muito antigo, que tem sido intensificado nos últimos tempos, com o agravamento das crises econômicas, sociais e humanitárias e com a volta do Brasil ao mapa da fome. O tema nos faz refletir sobre um país que é rico, mas que não distribui a sua riqueza de maneira equânime e ao invés de tratar a pobreza com políticas públicas, tenta escondê-la.
O termo aporofobia vem do grego aporos, que quer dizer pobre e foi cunhado pela filósofa Adela Cortina, em seu livro Aporofobia, aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Portanto, aporofobia significa a aversão, o nojo, a rejeição, a indiferença, o medo fantasioso e até pânico em relação aos pobres, seja à sua presença próxima ou mesmo à distância. Mas, de que maneiras a aporofobia pode se manifestar?
Em relação ao comportamento individual, uma das formas mais comuns é por meio de um olhar atravessado, de uma passada mais acelerada, de um desviar de calçada, pela expressão do medo de que algo lhe possa ser roubado, pelo medo de “pegar” alguma doença, transmitida por aquela pessoa de presença incômoda e indesejada ou pelo medo de se aproximar daquilo que algumas pessoas mais temem na vida: ficar pobre e, consequentemente, ser rejeitado, excluído, invisibilizado e marginalizado, do mesmo modo como fazem a essas pessoas.
Em relação ao comportamento coletivo, observa-se a colocação de grades nas calçadas ou em fachadas de lojas e residências, e de cacos de vidro e pregos no chão, em bancadas ou vitrines, para impedir que os pobres possam se sentar ou dormir no local.
E, em relação ao poder público, observa-se a retirada de bancos das praças ou ainda da colocação de paralelepípedos e pedras pontiagudas em baixo dos viadutos nos trechos de avenidas mais movimentadas, para evitar que as pessoas durmam ou se estabeleçam por lá. Neste caso, o poder público, por incapacidade ou falta de prioridade, adota a postura de “higienizar” a cidade, escondendo a pobreza que grita e reclama visibilidade aos olhares de quem trafega por esses lugares, expondo a fragilidade das políticas públicas.
PublicidadeEm postura contrária a estes tipos de atitudes, uma das cenas que encheram os olhos das pessoas que têm um mínimo de sensibilidade foi a do padre Júlio Lancelotti, da paróquia de São Miguel Arcanjo, em São Paulo, a quem tive o prazer de entrevistar. Com idade um pouco avançada, segurou nas mãos um gigantesco martelo e começou a golpear paralelepípedos na tentativa de removê-los debaixo de um viaduto em São Paulo. A atitude foi seguida por muitos e a missão foi cumprida, finalizando com a colocação de flores em lugar das pedras.
O padre Júlio Lancelotti tem sido um dos principais protagonistas do país a dar visibilidade e tratar a questão com um olhar verdadeiramente cristão, em favor dos seres humanos abandonados e rejeitados muitas vezes pela própria igreja, como se pode ver na foto deste cartaz, tirada no interior da igreja de São Francisco em Florianópolis, desmotivando os “fiéis” a darem esmolas. Diz o cartaz: “pedimos, por gentileza, não dar esmolas no interior da igreja, nem no portão. Isso não dá dignidade…”.
Sim, sou dos que pensam que até a caridade deve ser feita com responsabilidade, mas essa caridade muitas vezes organizada por instituições e grupos de voluntários e ONGs não chega a todos. E como fica a situação dos excluídos dos excluídos? A frase que desestimula um gesto de caridade dento da própria igreja chega a ser análoga a algo como “não dê comida aos animais” ou “não alimente os pombos; eles trazem doenças”. Diz ainda que “não dá dignidade”. Ora, mas então quem devolverá, ou, de onde virá a dignidade já foi roubada dessas pessoas? Do céu, depois da morte?
Aliás, como é possível falar em dignidade a quem não tem o que comer, nem onde morar? Pior que isso, esqueçamos o morar: são pessoas que não têm nem ao menos onde dormir ou fazer suas necessidades fisiológicas. Você consegue ter noção do que significa isso? Ser obrigado a cagar e mijar na rua? É algo tão estarrecedor que é como se dar esmolas fosse a causa da pobreza e das mazelas da sociedade.
Choca, do mesmo modo, a frase de um outro cartaz muito comum, espalhado por algumas secretarias de assistência social de algumas cidades do país: “dar esmolas colabora para a permanência das pessoas nas ruas”. Então, a culpa é das esmolas… e se parar de dar esmolas, o problema acaba? E o tipo de política econômica neoliberal desenvolvida no país não tem nada a ver com isso?
Há outros dois exemplos terríveis: um é a visão preconceituosa e generalista de que a pessoa é pobre porque não estudou e não trabalhou porque não quis. Mas, podemos perguntar: a pessoa teve oportunidade de estudar? Teve oportunidade de trabalhar? Está ali porque quer, de livre, consciente e espontânea vontade? Alguém realmente é capaz de imaginar isso? O outro, é o problema das drogas, que existe de fato, mas, do mesmo modo, é necessário se questionar: os que se enquadram nesse caso estão nesta situação por decisão livre e consciente?
São problemas sociais, em parte fruto de crises econômicas que têm vomitado seres humanos nas ruas como dejetos imprestáveis a um sistema, que por muito tempo foi por eles alimentado, antes de os descartarem. Os preços dos alugueis e dos imóveis tem aumentado a cada dia em contrário à situação dos salários, cada vez mais defasados e devorados pela inflação e ao aumento do desemprego.
Quando numa sociedade há pessoas que são movidas por interesses mesquinhos e individualistas, enquanto você tiver algo a oferecer, haverá algum tipo de acolhimento, quando não, será desprezado. Como diz o professor Jessé Sousa, que prefacia o livro da professora Adela Cortina, esse é um fenômeno que marca a sociedade brasileira e precisa ser melhor compreendido e combatido. Devemos ter muito cuidado com essa questão, pois, como explica a professora, que também inclui os emigrantes entre os que sofrem com o mesmo problema, “todos nós temos uma pré-disposição para esta fobia” e as saídas para superação desses problemas se dará “através da educação, da eliminação das desigualdades econômicas, da promoção de uma democracia que leva a igualdade a sério e da promoção de uma hospitalidade cosmopolita”. Agora que você já conhece mais sobre o assunto, consulte o seu coração e tente responder: há nele algum indício de aporofobia?
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