Vitória Freire, de Manaus *
Especial para o Congresso em Foco
No ano de 2023, os vereadores de Manaus desembolsaram uma quantia superior a R$ 3 milhões exclusivamente em despesas com combustíveis. Os gastos foram financiados pela Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap), popularmente conhecida como “cotão”. Além do salário mensal de R$ 18.991, os parlamentares manauaras contam com uma verba adicional de R$ 33 mil por mês, o equivalente ao vencimento de um juiz em início de carreira no estado do Amazonas.
Conforme a legislação, a Ceap é destinada à cobertura de gastos relacionados à atividade parlamentar, como combustíveis, locação de veículos e telefonia. O benefício também existe no Congresso e outros legislativos do país. De acordo com levantamento do Congresso em Foco no Portal de Transparência da Câmara Municipal de Manaus, os vereadores da capital amazonense gastaram R$ 3.209.561,15, no período de janeiro e novembro, apenas com combustíveis. A conta foi paga pelo contribuinte. Assim como acontece no Congresso, o pagamento se dá por meio de ressarcimento mediante a apresentação de nota fiscal. Em dezembro, uma decisão judicial suspendeu o cotão na Câmara de Manaus (entenda mais abaixo).
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Em 2023, o preço médio da gasolina em Manaus era de R$ 6,28 por litro. Com R$ 3 milhões, seria possível comprar 478 mil litros de gasolina. Conforme o Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBEV) do Inmetro, o Chevrolet Spin, o carro menos econômico do Brasil, tem um consumo de 10,3 km por litro em cidades. Mesmo utilizando esse modelo de veículo, os vereadores teriam a capacidade de dar mais de 131 voltas ao redor da Terra (40.000 km cada) com a quantidade de combustível adquirida com dinheiro público.
Dos 41 vereadores de Manaus, apenas Ivo Santos da Silva Neto e Dione Carvalho dos Santos, ambos do Patriota, não fizeram uso da cota para cobrir gastos com combustíveis. Os três mais gastadores foram Raiff Matos (DC), William Alemão (Cidadania) e Jaildo Oliveira (PCdoB).
VEJA QUANTO CADA VEREADOR GASTOU COM COMBUSTÍVEIS
Campeões de gastos
Entre janeiro e outubro, Raiff Matos gastou cerca de R$ 152 mil em combustíveis. Somente no mês de janeiro, foram R$ 16 mil. Nos meses seguintes, os valores oscilaram entre R$ 11 mil e R$ 16 mil. Com o montante de um ano, seria possível abastecer um tanque de 53 litros, como o de uma Spin, 2.868 vezes, o que equivale a 37 voltas ao mundo ou ao trajeto entre Manaus e Porto Alegre, a capital mais diante do Amazonas, 337 vezes.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o salário médio do brasileiro em 2022 foi de R$ 2.787. No segundo trimestre de 2023, o abastecimento do tanque de um carro consumiu até 12,1% da renda das famílias brasileiras, como apontado pelo Indicador de Poder de Compra de Combustíveis, calculado pela Fipe a partir dos dados da PNAD Contínua.
Com base nesse montante, os brasileiros gastaram, em média, R$ 181,15 do total de sua renda mensal para abastecer o tanque com gasolina – uma quantia 60 vezes inferior às despesas mensais de Raiff com combustíveis.
No mês de novembro, não há registros de despesas para Raiff no Portal da Transparência. Além disso, em dezembro, nenhum parlamentar recebeu a Ceap devido à suspensão do pagamento por ordem judicial.
Apoiador dedicado do ex-presidente Jair Bolsonaro, o parlamentar adotou, durante a campanha eleitoral de 2020, quando se elegeu vereador, um discurso em “defesa do conservadorismo, da tradicional família brasileira e dos princípios cristãos, enfatizando seu compromisso contra a corrupção.”
No caso do vereador William Alemão, embora não haja registro do recibo do mês de outubro e ele não tenha utilizado o cotão em janeiro, as despesas com combustíveis totalizaram aproximadamente R$ 147 mil.
Em setembro de 2023, circulou um dossiê de origem desconhecida, alegando supostas irregularidades relacionadas ao uso da Ceap por parte de Alemão. O documento indicava indícios de que o político teria alugado, com recursos públicos do cotão, veículos que já foram de sua propriedade e de sua esposa. Na ocasião, o vereador contestou as acusações.
Na terceira posição da lista dos vereadores que mais gastaram com combustíveis está Jaildo Oliveira. Reconhecido por sua defesa em prol da classe de rodoviários, Jaildo desembolsou R$ 128.805 com combustíveis. Raiff, William Alemão e Jaildo gastaram juntos quase meio milhão de reais somente em combustíveis ao longo de 2023. As despesas conjuntas dos três totalizaram aproximadamente R$ 429 mil (R$ 428.672,20), valor que permitiria, aos parlamentares, realizar cerca de 50 viagens de ida a Pequim, na China.
A reportagem entrou em contato com os três vereadores que mais gastaram com combustíveis.
Raiff Matos afirmou que foi um “dos mais econômicos na utilização da Ceap no primeiro ano do mandato [2021]”. Contudo, segundo o vereador, os recursos economizados não retornavam em benefícios diretos para a população, sendo redirecionados para o Orçamento da Câmara Municipal, para uso discricionário da Mesa Diretora.
“Por isso, em 2022, propus a criação do Fundo Especial Financeiro de Economias Parlamentares (Fefep) para que os recursos economizados pelos vereadores pudessem ser aplicados em programas e ações sociais, culturais, educacionais e de saúde em Manaus. Infelizmente, a proposta não foi acolhida pela Mesa Diretora da CMM”, diz trecho da nota enviada por Raiff.
Em razão disso, o político argumentou que decidiu utilizar o recurso para potencializar sua ação parlamentar. “Estruturando meus assessores externos para cobrir toda a cidade de Manaus, na fiscalização e acompanhamento de problemas na cidade”, alega ele. Em 2023, Raiff gastou R$ 314.502,76 das verbas da Ceap.
Já o vereador William Alemão disse que “se o [Poder] Executivo fizesse a parte dele”, sua equipe de assessores não precisaria rodar pela cidade inteira registrando demandas que não são atendidas. Segundo ele, é possível verificar em sua página na internet todos os pontos visitados desde o início de seu mandato.
“O combustível usado se refere ao translado da minha equipe, que trabalha de segunda a sexta, e às vezes, sábado e domingo. O uso da verba é legal e uso porque já pago o aluguel da van e do ônibus, que são usados para o deslocamento da equipe”, destacou o parlamentar.
O vereador Jaildo Oliveira, até o momento de fechamento desta reportagem, não prestou nenhum esclarecimento. O espaço está aberto para o vereador caso ele queira se manifestar.
Suspensão na Justiça
O pagamento da Ceap na Câmara Municipal de Manaus está suspenso por determinação judicial desde novembro. A Casa aguarda análise de recurso.
Em janeiro de 2022, a juíza Etelvina Lobo Braga, titular da 3ª Vara da Fazenda Pública de Manaus, determinou a anulação do Projeto de Lei (PL) 672/2021, que aumentou, em 83% o valor da Ceap, em resposta a uma ação popular com pedido de liminar impetrada pelo então vereador Amom Mandel (Cidadania), hoje deputado federal, e pelo vereador Rodrigo Guedes (Republicanos).
O PL, aprovado pelo Plenário da CMM em 15 de dezembro de 2021 e relacionado à Lei Ordinária n.º 505, também promulgada na mesma data, autorizou o aumento, já a partir do mês de janeiro de 2022.
Amom e Rodrigo argumentaram, na época, que a Mesa Diretora da Câmara de Manaus, “no apagar das luzes”, da última reunião ordinária do ano de 2021, submeteu à aprovação do Plenário o PL para permitir a majoração do valor do “cotão”, que é mensal e individual, destinado ao custeio dos gastos dos vereadores no exercício das atividades do parlamento. Antes do reajuste, cada um dos 41 vereadores de Manaus recebia mensalmente um valor de R$ 18 mil. Com a aprovação do Plenário, o montante aumentou para R$ 33 mil.
Na ação popular, os autores alegaram que o PL não seguiu “o rito ordinário de tramitação das proposituras legislativas normalmente protocoladas”. Em vez disso, foi apresentado “por meio de regime de urgência, o que contraria o disposto no Regimento Interno da Câmara”, conforme registrado nos autos.
Após a decisão da juíza Etelvina Lobo, a CMM recorreu por intermédio de Agravos de Instrumento e Agravos Internos. No julgamento, o desembargador Paulo Caminha apontou “uso indevido” da ação popular, extinguindo-a em abril de 2023.
Paulo Caminha reiterou que, conforme a Constituição (art. 5°, LXXII), a validade de leis não pode ser contestada por meio de ação popular, e que o instrumento legal estava sendo tratado como “um substituto para ações concentradas de controle de constitucionalidade.”
A juíza Etelvina Lobo, contudo, foi de encontro à decisão do desembargador, e manteve o posicionamento estabelecido no início de 2022, julgando, em 29 de novembro, a ação popular procedente e determinando, por fim, a suspensão do PL e, consequentemente, a inviabilização do aumento da Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar até o trânsito em julgado. Ainda em novembro, a Câmara Municipal de Manaus informou, por meio de nota, que recorreria judicialmente.
Você pode fiscalizar o quanto e como cada congressista utiliza da cota parlamentar. Os dados estão disponíveis no Cartão da Transparência, ferramenta do Congresso em Foco que conquistou seis Leões no Festival de Cannes em 2023, a mais importante premiação da publicidade no mundo. Acesse.
Quanto custa um deputado federal