Vinicius do Vale *
Ao longo da última semana, foi noticiado que um exemplar do livro Amoras (Ed. Companhia das Letrinhas, 2018), de Emicida, pertencente a um colégio, havia sido vandalizado pela mãe de um aluno, em Salvador. O livro, que apresenta o universo dos orixás e das religiões de matriz africana ao público infantil, além de ícones da história da resistência negra mundial, foi devolvido com anotações com menções e referências bíblicas. A partir delas, a mãe do aluno expressava que os orixás seriam “anjos caídos”, que o livro seria anti-cristão e uma “blasfêmia contra o Deus vivo”. Além disso, as anotações diziam que a história da humanidade havia sido modificada e que a mesma deveria ser estudada a partir da Bíblia.
As reações ao episódio o classificaram como intolerância religiosa e racismo religioso. Essas classificações, a rigor, não estão erradas: realmente, o discurso proferido pela mãe do discente traz consigo a noção de que o cristianismo seria superior às outras religiões, em especial as de matriz africana, e de que qualquer ideia que contrarie sua doutrina seria uma blasfêmia e mentira. Por consequência, seu discurso chama os adeptos de outras religiões de cultuadores de demônios e blasfemos.
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No entanto, para além de tipificações conceituais e penais, é preciso olhar o episódio levando em consideração a complexidade dos fenômenos religiosos e da própria atividade pedagógica.
É típico das religiões a noção de que suas doutrinas e divindades explicam o mundo e são superiores, enquanto às demais seriam falsas, demoníacas, ou trariam apenas uma outra versão de seu mesmo Deus ou doutrina. Ainda que existam vivências e debates ecumênicos, geralmente experenciados por setores intelectualizados do universo religioso, uma boa parte dos fiéis de qualquer religião atua a partir de sistemas de crenças em que as noções centrais são as de verdade/mentira, fiéis/hereges, virtuosos/pecadores.
Entender esse ponto abre um caminho para compreender o papel do sistema escolar em meio a essa problemática. A escola reflete a sociedade em que está inserida e trabalha, inclusive, a partir de seus preconceitos. É natural que conflitos sociais oriundos de uma sociedade diversa – inclusive religiosamente – apareçam no ambiente escolar. A vandalização do livro de Emicida é, nesse sentido, uma oportunidade pedagógica para, justamente, desconstruir a intolerância contida no próprio episódio. Ele abre margem para que temas como o racismo a tolerância e o respeito sejam trabalhados. Inclusive, esse é um dos principais ganhos que a discussão sobre temas sociais traz ao ambiente escolar.
Portanto, aos críticos das redes sociais que pediram punições severas (inclusive prisão) à referida mãe cristã, apelo: mais pedagogia e menos punitivismo, por favor.
* Vinicius do Valle é doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de dez anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). Atualmente, atua na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e em outras instituições, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos, além de realizar pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss).
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