Um fortalezense de ascendência negra e indígena. Uma expressão puríssima da miscigenação que marcou, desde os primórdios da colonização, a formação da gente brasileira. E o que pode parecer um estereótipo é, na verdade, a definição do biotipo de Antonio Bandeira, um dos mais valorizados pintores brasileiros, com obras distribuídas nas maiores coleções particulares e museus do Brasil e do mundo.
Um cearense cujo centenário de nascimento transcorreu no último dia 26 de maio. Bandeira viveu entre três lugares e, em cada uma dessas localidades, deixou uma marca inconfundível.
Inventivo, carismático, boêmio e extremamente talentoso, Antonio Bandeira dividiu seus 45 anos de vida peregrinando entre Fortaleza, Rio de Janeiro e Paris, espelhando em sua obra diferentes experiências e paisagens.
Seu único casamento e sua paternidade ocorreram apenas com a arte.
Mestre na pintura abstrata e nas aquarelas, saiu pela primeira vez das terras alencarinas em 1945 em direção ao Rio de Janeiro e, em 1946, recebeu uma bolsa de estudos para a França, onde estudou na Escola Nacional Superior de Belas Artes e na Académie de La Grande Chaumière.
Certa vez, escreveu para um jornal da capital cearense: “Mais um retorno a Fortaleza. Volto à terrinha com a mesma alegria e cada vez sinto mais que esta cidade do Nordeste brasileiro não tem nada de provinciana. Clara cidade, fura-vento, rompe-nuvem, sem nada de tradição nem de folclore, nem de falso. Jovem cidade sempre pronta a receber o que se lhe dá com amor”, numa explícita declaração de amor à sua cidade.
E é aqui que encontro a referência para o que reputo ser um excelente argumento para refletirmos sobre que vemos em nosso país nos dias atuais, onde falta-nos, principalmente, um traço identitário de onde viemos, o que somos e para onde queremos ir como nação.
O Brasil padece, infelizmente, de um gravíssimo mal na atualidade: a total perda de empatia e humanização.
Algo que, concretamente, sempre esteve presente no cotidiano brasileiro e que fora um dos alicerces de construção da nossa alma enquanto povo, a despeito do que vem nos alertando o sociólogo Jessé de Souza que, robustamente embasado, nos diz que “reproduzimos sob máscaras modernas os mesmos ódio e desprezo às classes populares que antes eram devotados aos escravos”.
Por que será que nos desumanizamos tanto a ponto de até tolerar, no limite máximo que a nossa indignação possa proporcionar, que veículos sejam transformados em câmeras de gás e que a intolerância seja o mais fluido dos sentimentos???
Se na Antiguidade, como nos lembra Jessé de Souza, as religiões ofereciam uma explicação totalizante sobre as sociedades, na Idade Moderna seriam os mitos nacionais, em parte informados pela ciência, que desempenhariam esse papel: “a narrativa que se construiu sobre nós mesmos e que foi comprada e difundida pelos intelectuais brasileiros, muitas vezes, a serviço da elite”, nos alerta o sociólogo, destacando que “em todas as sociedades, as elites sabem que precisam, primeiro, dominar a cabeça das pessoas com ideias para, depois, enfiar a mão no bolso delas. É preciso discutir essas ideias que nos escravizam para não repetirmos mais uma história que vem se mantendo há mais de cem anos”, pontua Jessé.
Na antagônica exposição de sentimentos onde, de um lado, temos a inspiração artística de Bandeira declarando amor e sentido à vida pela interseção de convivências em lugares distintos do globo e, de outro lado, manifestação explícita de ignorância e ódio desumanizante, podemos constatar o quanto precisamos nos reconciliar enquanto Nação, na busca por construir um sentido sobre nós mesmos e de saber quem somos e o que nos dá sentido na vida.
Bandeira faleceu em Paris, em 6 de outubro de 1967, aos 45 anos de idade, e com quase duas décadas em um movimento contínuo de deslocamento entre Fortaleza, Rio de Janeiro e Paris. Mesmo com essa existência quase cigana, peregrina, ele cessava os comentários sobre o amor que detinha pela terra em que nasceu. “Fico me indagando às vezes que mistério tem por que me inspira este amor tão forte, tão constante, tão fiel. A mim mesmo respondo que é brisa, é luz, é gente”.
Pelo espelho de Bandeira, vemos que o Brasil precisa respirar e valorizar os ventos da democracia, a luz da esperança e a dignidade e bravura da gente brasileira!!!
Uma bandeira para o Brasil
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