Alertas ignorados. Ordens descumpridas. Pedidos de férias, folga e licenças dos principais responsáveis. Ação do Exército que acabou ajudando a proteger os golpistas. Em relatório de 62 páginas com mais 15 documentos anexos e vídeos, o interventor na segurança do Distrito Federal, Ricardo Capelli relata em detalhes as circunstâncias que acabaram facilitando as invasões dos três principais prédios da República, as depredações e a frustrada tentativa de golpe ocorrida no dia 8 de janeiro.
O relato de Capelli não faz acusações diretas. Mas a sequência dos fatos narrados mostra uma ação articulada que teve como cenário principal o acampamento dos golpistas na Praça dos Cristais, em frente ao Quartel General do Exército. Ali, com grande infraestrutura, os golpistas puderam por semanas articular a tentativa de golpe sem serem importunados. E depois, a intervenção do então comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, impediu a entrada na área de policiais impedindo que várias prisões fossem executadas.
Veja a íntegra do relatório do interventor:
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O acampamento
O relato mostra como o acampamento bolsonarista em frente ao QG foi o posto de planejamento do golpe. O acampamento foi instalado no dia 1º de novembro de 2022. E rapidamente foi crescendo. Fotos anexadas ao relatório mostram essa rápida expansão:
Após a posse do presidente Lula no dia 1º de janeiro, o acampamento reduziu de tamanho, chegando a abrigar somente 300 pessoas. Então, na véspera dos atos golpistas, voltou a crescer novamente de forma exponencial.
“Desde o início, o acampamento apresentava uma complexa e engenhosa organização, com distribuição das tendas em setores específicos, destinadas à cozinha e despensa, a medicamentos e/ou atendimento médico, ao fornecimento de energia por geradores, havia acesso à internet, informações, local para realização de cultos religiosos e diversas outras organizações internas”, descreve o relatório.
O gráfico abaixo representa a quantidade de veículos por unidades da federação de procedência, no dia 11 de novembro de 2022:
A curiosa ausência de Anderson Torres
Após os atos de vandalismo que aconteceram na diplomação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de Lula como presidente eleito no dia 12 de dezembro, foi estabelecido o Protocolo de Operações Integradas nº 41/2022, que orientou como seriam as ações de segurança na posse no dia 1º de janeiro.
“Cabe ressaltar que a posse ocorreu sem o registro de atos violentos”, constata o relatório. O que mudou, então, do dia 1º de janeiro para o dia 8, quando foram invadidos e depredados o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal? O comando da segurança no Distrito Federal mudou de mãos.
No dia 2 de janeiro, um dia depois da posse, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, nomeia o ex-ministro da Justiça Anderson Torres secretário de Segurança Pública. Mas no dia 8, Anderson Torres não estava em Brasília para comandar a segurança. Estava na Flórida, nos Estados Unidos, curiosamente o mesmo lugar onde se encontrava Jair Bolsonaro.
Curioso também que o período de férias de Anderson Torres estava oficialmente marcado para começar no dia 9 de janeiro. Mas antes disso ele já não estava em Brasília. Quem atuou durante os eventos foi o secretário executivo, Fernando de Sousa Oliveira.
E seguem outros pontos curiosos. A maioria dos comandantes das forças policiais de Brasília também deu um jeito de não trabalhar naquele domingo, 8 de janeiro, conforme conta o relatório de Capelli.
“Documentos da PMDF demonstram que estavam de afastamento por férias no dia 08/01/2023 os Comandantes dos seguintes Batalhões subordinados ao 1o CPR: 3o BPM, 5o BPM, 6o BPM, 7o BPM e 24o BPM; bem como o Comandante do 2o CPR. O Comandante do CPME estava de afastamento por férias, bem como o Comandante do BPCHOQUE. A par de tudo isso, soma-se o fato de o Chefe do Departamento Operacional – DOP, Cel. Jorge Eduardo Naime Barreto, ao qual todos aqueles estão subordinados, solicitou “dispensa recompensa” entre os dias 03/01/2023 e 08/01/2023, razão pela qual não estava de serviço no dia dos fatos”.
“As mudanças, após a posse, da estrutura central de planejamento e comando operacional da SSPDF afetou o planejamento e a execução das ações”, conclui o relatório.
Não foi por falta de alerta
Em sua defesa, Ibaneis Rocha tem divulgado um áudio, no qual o secretário executivo da Secretaria de Segurança lhe tranquiliza dizendo que nada parecia indicar que houvesse confusão na manifestação do dia 8 de janeiro.
No entanto, o relatório de Capelli detalha que essa possibilidade era aventada. A Subsecretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça tinha informações nesse sentido desde o dia 5 de janeiro. Postagens chamando para as manifestações circulavam pelas redes sociais.
Diante das informações, uma reunião foi convocada reunindo o ministério com os órgãos de segurança do DF: Polícia Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, Departamento de Trânsito (Detran), Departamento de Estradas e Rodagem (DER), Polícias Legislativas da Câmara e do Senado, Polícia Judicial do STF, Ministério das Relações Exteriores e DF Legal.
“Na referida reunião, além de repassar as informações obtidas (por meio de coleta em fontes abertas de pesquisa) a todos presentes, foram realizadas discussões e pactuações”, descreve o relatório. Estava acertado que os procedimentos seguiriam o mesma esquema utilizado na posse. Mas, por alguma razão, no dia 8 as forças de segurança do DF resolveram fazer diferente.
O acampamento volta a crescer
Um outro fator deveria ter sido fonte de preocupação. Antes esvaziado, o acampamento da Praça dos Cristais voltou a crescer na véspera dos atos golpistas. Diversos ônibus chegaram de vários pontos do país. As fotos mostram o grande crescimento da quantidade de pessoas.
Nesse ponto, Capelli destaca a ação direta do Exército para dificultar a desmobilização do acampamento. “Desde o fim de 2022, ocorreram ações planejadas com o intuito de desmobilização do acampamento, porém foram canceladas por fatores alheios às forças de segurança do Distrito Federal, sendo algumas operações interrompidas já em andamento e com tropas da segurança pública no terreno, por orientação do Exército Brasileiro”.
“Pode-se concluir que não houve falta de informações e alertas sobre os riscos da manifestação”, reforça o interventor.
“A despeito das informações existentes, o quantitativo de militares dispostos no terreno foi insuficiente para conter o acesso dos manifestantes”, afirma o interventor. O resultado é que as barreiras de contenção organizadas foram facilmente rompidas. As forças de segurança do DF levaram cerca de duas horas até pedirem reforço para reprimir os baderneiros.
Lentidão
Mesmo depois que Lula decretou a intervenção na segurança do DF, as dificuldades continuaram. Capelli relata que os policiais pareciam atender às suas ordens de forma lenta, facilitando a vida dos golpistas.
“Quando a intervenção federal foi decretada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por volta das 17h do dia 8 de janeiro de 2023, o interventor designado Ricardo Cappelli foi até o Centro de Operações de Brasília (CIOB), na sede da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) para tomar conhecimento do que havia sido feito até aquele momento e as últimas atualizações dos atos desencadeados naquela tarde. Lá, determinou aos chefes das forças de segurança a mobilização das tropas disponíveis e a convocação para a Esplanada de todo o efetivo existente”, diz o relatório.
“Ao voltar para a Esplanada dos Ministérios, encontrou uma linha defensiva de policiais na altura da Alameda das Bandeiras e imediatamente determinou que a linha avançasse a fim de empurrar os manifestantes para fora da Esplanada e efetuar o máximo de prisões possíveis. Houve muita dificuldade para que a ordem fosse cumprida, a linha passou a avançar lentamente, dando tempo necessário para que parte dos vândalos deixasse o ambiente e outros voltassem para o acampamento dentro do Setor Militar Urbano”, diz o texto.
Mesmo assim, algumas prisões foram efetuadas. A linha avançou até chegar à entrada do Setor Militar Urbano (SMU), onde está o QG do Exército e onde estava o acampamento dos golpistas. Foi quando a polícia foi impedida de entrar. O comandante Militar do Planalto, general Henrique Dutra, posicionou soldados e dois blindados na entrada da via que leva até o QG. “O Interventor Federal determinou que o comandante-geral da PMDF mobilizasse a tropa para efetuar as prisões no acampamento em frente ao QG do Exército, movimento que foi abortado pela intervenção do General Dutra (…), que ponderou para que a ação acontecesse somente no dia seguinte pela manhã”.
Apesar das diversas omissões, falta de planejamento e outras questões que ainda precisarão ser mais bem investigadas, felizmente o golpe contra a democracia não obteve sucesso. As investigações prosseguem. Nesta sexta-feira, novas prisões ocorreram.