*Carolina Marchiori Bezerra
A recente reforma tributária consagrada pela Emenda Constitucional (EC) nº 132, de 2023, representa mudanças significativas para o sistema tributário brasileiro. A Reforma unificou cinco tributos existentes, criando um IVA dual: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) – de competência federal e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) – de competência estadual e municipal, e também o Imposto Seletivo (IS) – que também será de competência federal.
O IS incidirá sobre produtos classificados como nocivos à saúde e ao meio ambiente. O imposto foi criado com o propósito de desestimular o consumo de itens [1] como carvão, veículos altamente poluentes, embarcações e aeronaves, bens minerais, cigarros e bebidas alcoólicas e açucaradas, os quais foram incluídos no Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024, que regulamenta a Reforma Tributária e que já foi aprovado na Câmara dos Deputados em 11 de julho de 2024 e que agora está em discussão no Senado.
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Tendo como um dos focos as externalidades socioambientais, o IS reafirma o princípio disposto no inciso VI do artigo 170 da Constituição Federal [2] e reforça a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) [3], instituída pela Lei 12.187, de 2009. A medida representa um avanço necessário para alinhar a política fiscal com a construção de um meio ambiente equilibrado para as atuais e futuras gerações [4]. No entanto, para que este imposto cumpra efetivamente seu objetivo de reduzir externalidades negativas e para que promova a transformação ecológica planejada pelo governo, é imperativo que os recursos arrecadados sejam utilizados de forma adequada.
Ao contrário de servir apenas como mais uma fonte de arrecadação de receitas para o governo federal, o IS deve funcionar como instrumento de justiça fiscal e de compensação pelos danos objetivamente causados à saúde e ao meio ambiente. Desse modo, e particularmente no que se refere à temática ambiental, os recursos arrecadados com este imposto poderiam ser empregados em programas que prioritariamente fomentem a preservação e a restauração e que compensem os danos causados pela produção e consumo de bens poluentes e intensivos em carbono, garantindo, também, que os recursos arrecadados não sejam destinados a estas mesmas atividades ambientalmente ineficientes e socialmente prejudiciais.
O artigo 159 da CF/88, alterado pela EC 132 já estabelece que 50% dos recursos arrecadados com o IS serão redistribuídos para os Estados, Municípios e programas de financiamento produtivo, como os Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios. No entanto, os 50% restantes, que permanecerão com a União, poderiam ser empregados para mitigar os danos ambientais objetivamente causados pelos produtos tributados com o IS, por serem nocivos. Mesmo que os recursos sejam extrafiscais e não vinculativos, a sua arrecadação abre uma janela de oportunidade para que o Brasil adote práticas reconhecidamente eficazes de promover rearranjos na produção por meio de incentivos extrafiscais ao consumo, como já testado com sucesso em outros modelos de distribuição de recursos.
A experiência de mais de 30 anos com o ICMS Ecológico, revalidado na aprovação da EC 132 e transformado no IBS Ecológico, que irá destinar parte do valor arrecadado com o IBS para municípios que promovem ações de preservação ambiental [5], é um exemplo positivo que pode ser expandido e adaptado. Este modelo [6] tem se mostrado eficaz para reorganizar a distribuição dos recursos ao estimular que Estados e Municípios adotem critérios como a criação de unidades de conservação, a ampliação do esgotamento sanitário, de acesso à água potável e de coleta e reciclagem de resíduos sólidos, que então direcionam novos investimentos com critérios sustentáveis, também nas áreas urbanas das cidades. Esse modelo poderia ser espelhado e fortalecido nos fundos de participação dos estados e municípios que receberão recursos do IS e também na parcela dos recursos em posse da União, incluindo a implementação de medidas de redução de emissões de gases de efeito estufa, assim como o fomento à economia de baixo carbono, o apoio à inovações tecnológicas para a transição energética e a promoção da agricultura sustentável.
Além disso, é crucial vedar a concessão de qualquer tipo de incentivo fiscal ou benefício tributário a produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, como ocorre atualmente, por exemplo, com os subsídios bilionários concedidos ao setor de óleo e gás, por meio do regime Repetro. Entre 2018 e 2022, esse regime representou a renúncia fiscal (quando o governo deixa de arrecadar impostos devidos, para beneficiar um setor específico) de R$159 bilhões. Este tipo de incentivo, que já dura décadas e continua favorecendo e ampliando a produção e o consumo de combustíveis fósseis, é um dos principais impedimentos para que alternativas aos fósseis se tornem mais competitivas – e isso ocorre em um momento que o Brasil deveria estar focado na transição para uma economia de baixo carbono.
Essas são ações fundamentais para que o Imposto Seletivo cumpra sua função extrafiscal de desestimular o consumo de bens nocivos e, ao mesmo tempo, promova alternativas econômicas sustentáveis. É importante que os legisladores atentem-se para os riscos de que, sem uma regulamentação clara, os valores arrecadados com o Imposto Seletivo poderão ser desviados de sua finalidade ao perpetuar atividades que agravam a crise climática, como o subsídio aos combustíveis fósseis ou o estímulo ao consumo predatório, e aquelas diretamente ligadas à degradação ambiental, como o uso intensivo de agrotóxicos nas monoculturas de commodities. Sem mecanismos regulatórios, o IS pode se afastar de seus princípios econômicos e tributários e, assim, irá se tornar apenas mais uma fonte de arrecadação, ao invés de servir como instrumento de transformação socioambiental, tal como determinado pelo texto constitucional.
Nosso objetivo deve ser o de garantir que a implementação do Imposto Seletivo e sua destinação sejam orientadas por esta visão estratégica de longo prazo, que promova a saúde e a proteção ambiental, para as atuais e futuras gerações. O Brasil tem a oportunidade de utilizar esse instrumento para liderar a transição para uma economia verde, inclusiva e resiliente, e isso só será possível com uma governança forte, transparência e controle social, alinhada ao Plano de Transformação Ecológica proposto em 2023 pelo Governo Federal. Só assim o IS poderá cumprir sua função de contribuir para a construção de um Brasil mais justo e sustentável.
1 O Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024 estabeleceu, por exemplo, alíquota de até 1% para o carvão mineral, enquanto a extração de minério de ferro, do petróleo e do gás natural, terão redução da alíquota máxima de 0,25% . Isso significa que se a alíquota padrão for, por exemplo, de 26,5%, então o produto com imposto seletivo de 0,25% vai ser taxado em 26,75%. No caso do carvão mineral, a alíquota nesse exemplo será de 27,5%.
2 O inciso VI garante a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.
3 Em seu artigo 6º, diz que devem ser aplicadas “medidas fiscais e tributárias destinadas a estimular a redução das emissões e remoção de gases de efeito estufa, incluindo alíquotas diferenciadas, isenções, compensações e incentivos, a serem estabelecidos em lei específica”.
4 Conforme estabelecido no Artigo 225 da CF/88.
5 Art. 158,§ 2º, inciso III.
6 BRITO, Rosane de Oliveira; MARQUES, Cícero Fernandes. “Pagamento por serviços ambientais: uma análise do ICMS Ecológico nos estados brasileiros”. Em: Planejamento e Políticas Públicas (PPP), nº 49, jul./dez. 2017. Brasília: Ipea, 2017. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8247>.
Carolina Marchiori Bezerra é Economista e doutoranda em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Atua como assessora de Advocacy em Economia Verde do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)*
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