Guilherme Lacerda e Antonio José Alves Jr. *
As ideias que se seguem são motivadas pela perplexidade frente ao ataque agressivo, na forma e no conteúdo, desferido contra o Banco Central do Brasil. Por sua história e pela seriedade de sua missão, essa instituição do Estado brasileiro jamais poderia ter sua administração adjetivada levianamente como temerária (uma conduta tipificada no código penal brasileiro).
Tais ataques não têm legitimidade política para sancionar a terceirização da gestão econômica do Brasil e muito menos encontram amparo técnico que as qualifique; são apenas expressão do apego a concepções anacrônicas, elaboradas quando o Brasil ainda engatinhava em termos de estabilidade monetária.
Desde a virada do século, economistas e dirigentes de bancos centrais em todo o mundo têm debatido o poder conferido às autoridades monetárias e sua missão. Esse debate se acentuou com o complexo quadro econômico mundial pós-crise. E são muitas as manifestações nesse sentido.
Em março deste ano, o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney, admitiu que a busca exclusiva da estabilidade de preços, típica de um Banco Central Independente, “…tornou-se uma distração perigosa para a economia”.
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Na mesma linha, Christine Lagarde, diretora-chefe do FMI, afirmou ter chegado a hora de se ajustar o controle dos governos sobre os Bancos Centrais; eles não podem ficar presos só ao objetivo da estabilidade de preços. E ela acrescenta que, como a crise ensinou, “a estabilidade de preços não necessariamente leva à estabilidade macroeconômica”. Ademais, as evidências revelam: os países que não têm meta de inflação ou Banco Central independente se saíram tão bem ou foram melhores que aqueles adeptos desse arcabouço na condução da política econômica.
Malcom Sawer (Universidade de Leeds) e Philip Arestis (Universidade de Cambridge) afirmam que “já passa da hora da política de meta de inflação operada por um banco central independente ser abandonada”.
Se o período da “Grande Moderação” (fim dos anos 80 até a crise de 2008/9), tal como batizado por Ben Bernanke, deu margem para que uma geração de economistas acreditasse em seu sucesso, reconhece-se agora que, naquele período, o crescimento do emprego e a estabilidade de preços não se deveram à política monetária, mas sim a uma mera coincidência.
Com a crise, o véu caiu. Os empregos e os salários ganharam relevância no foco da política monetária. A propósito, os presidentes dos bancos centrais das principais economias, reunidos em Jackson Hole (agosto último), concluíram ser indispensável perseguir o controle da inflação e o estímulo a empregos e salários. Referência que, desde meados dos anos 90, deixou aos poucos de ser considerada uma heresia, que os sabujos daqui insistem em preservar.
Agora, às vésperas das eleições presidenciais, os especialistas econômicos de Marina e Aécio, laureados por nossa mídia, continuam professando a tese do Banco Central independente. Está subentendido nessa postura que ao Banco Central cabe apenas e tão somente ser o guardião da moeda.
Por isso, sentem-se escandalizados quando entram em contato com a ideia de que o Banco Central deveria se preocupar também com empregos e com o equilíbrio macroeconômico como um todo. Reagindo ao que chamam de heresia, batem no peito para dizer que o emprego e o crescimento não dependem das forças monetárias.
Essa “modernidade” dos críticos ao Banco Central do Brasil está, pelo menos, 20 anos atrasada. Hoje em dia, nas economias centrais e emergentes, o consenso que se persegue é outro. A gestão monetária é uma peça essencial na determinação do emprego, do investimento e do crescimento, influenciando a “economia real”. O grande desafio é como coordenar a política monetária e a política fiscal para garantir o pleno emprego e a estabilidade macroeconômica, o que vai muito além da estabilidade inflacionária.
Mas o anacronismo não é o único problema dos defensores do Banco Central independente. Há, por detrás dessa tese, a ideia autoritária de que as decisões econômicas devem ser independentes do mundo político. Para eles, o Banco Central, tal como um think tank, deveria ser gerido pelos melhores e pairar acima do Estado. Ou seja, ser administrado sem se integrar à formulação da política econômica. Pretendem apenas a coordenação das expectativas manipuladas no espaço estrito do mercado financeiro, “locus” preferencial da seleção dos melhores.
A ideia de que as decisões de política monetária possam ser, em todo ou em parte, terceirizadas para um “board” de experts em um Banco Central independente é, na verdade, uma agressão aos princípios da democracia representativa, assim como o é a proposta de um “board” de especialistas para dar a última palavra na política fiscal (tal como se encontra em um dos programas). É esse desejo de submeter a política econômica de uma nação ao controle de “experts” que move ataques tão agressivos e insistentes.
A tese do Banco Central independente não pode ser apresentada com a leviandade de uma fórmula mágica e salvadora. Precisamos, sim, de um Banco Central republicano; uma instituição de Estado com profissionais com capacidade reconhecida, para executar a política monetária, inserida no bojo da política econômica como um todo.
Enfim, parafraseando John C. Williams, presidente do Federal Reserve Bank de São Francisco, a liturgia tão valorizada por aqui é fruto de uma falha em olhar o mundo e da incapacidade de ouvir. Não serão da virulência e da descompostura típicas da pregação do controle particular da política monetária que virão as boas propostas para o desenvolvimento do Brasil.
* Guilherme Lacerda é doutor em Economia pela Unicamp e diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Antônio José Alves Jr. é doutor em Economia pela UFRJ, assessor do presidente do BNDES e professor da UFRJ.