Por Francisco Gaetani*
Lula ganhou. Bolsonaro perdeu. A transição já começou. O novo presidente terá uma gigantesca tarefa política: montar uma coalizão que seja capaz de proporcionar-lhe apoio político para governar, construir a governabilidade junto ao Congresso e assegurar que em seu gabinete ministerial estejam dirigentes capazes de formular e implementar as políticas públicas para o sucesso de sua gestão. A tarefa política terá, porém, que ser conduzida ao mesmo tempo e em sintonia com outro desafio: a apropriação do estado em que se encontra a administração federal hoje.
Dois meses de um convívio complexo se desenham pela frente. O país tem muito a ganhar ou a perder conforme a forma como se processar a transição. O check out do governo que sai e o check in do governo que entra podem ser bem ou mal trabalhados. Muitas coisas vão depender do comportamento do presidente em exercício e do presidente eleito. A sinalização que derem para seus quadros dará o tom da transição pela qual o país passará nos próximos sessenta dias.
Nos Estados Unidos, uma organização não governamental suprapartidária – Parceria pelo Serviço Público – dá apoio a transições governamentais, facilitando a passagem do bastão de um governo para outro, de modo a que o país ganhe tempo. No Brasil, instituições do terceiro setor, integrantes do Movimento Pessoas à Frente, como a Fundação Lemann, Instituto Humanize e Instituto Republica.org, juntamente com organizações de ensino como a Fundação Getúlio Vargas, Fundação Dom Cabral e o Insper, se preparam para apoiar transições e novos governos nas transições estaduais.
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Um dos legados de FHC foi deixar estruturado um desenho institucionalizado do processo de transição presidencial: rotinas foram criadas, cargos temporários dimensionados, procedimentos definidos etc. Ganha-se muito tempo quando se encontram as informações organizadas, os cronogramas conhecidos e as urgências mapeadas. Quanto mais estruturadas as transições, maior o trânsito de informações entre o novo governo e o governo que se encerra.
No início de um novo mandato é comum o novo titular do Executivo dispor de muito poder e pouca informação. Já quando termina seu ciclo, a realidade é a contrária: o titular do Executivo já manda muito pouco, embora conheça bastante o desafio de conduzir o governo. Lula não é exatamente um novo governante. Mas a organização administrativa que encontrará é muito diferente daquela com a qual se deparou em 2003 e que deixou para trás em 2010. Muita coisa mudou.
PublicidadeTrês cenários se desenham para os próximos dois meses: uma transição civilizada, terra arrasada e mosaicos fragmentados. No primeiro cenário, o atual mandatário instala o processo de transição, cria cargos temporários para o novo gestor nomear uma equipe de trabalho provisória, indica principais interlocutores junto ao novo governo, disponibiliza dados e informações de forma transparente e cooperativa e prepara materiais que auxiliem a nova equipe a se apropriar da máquina administrativa, que assumirá de direito em janeiro.
No segundo cenário o governo atual orienta seus quadros dirigentes a “queimarem as plantações”, “explodirem as pontes”, “destruírem a memória técnica”, “apagarem os dados” e dificultarem ao máximo o trabalho de quem for assumir os cargos de direção do país. Neste caso, a desinformação é assumida como estratégia deliberada. A preservação de documentos, estatísticas e calendários críticos vai depender da capacidade de a burocracia permanente atuar no sentido de preservar a continuidade da administração, a despeito da mudança de governo e da orientação deletéria do governo que sai.
O terceiro cenário é um misto dos dois anteriores, na ausência de uma orientação central clara do centro do governo atual. Neste caso tudo vai depender de como os dirigentes de vários ministérios e órgãos públicos vão se comportar, assim como os ocupantes de cargos de chefia intermediária e mesmo a própria burocracia permanente – ainda que irregularmente distribuída pela esplanada. Neste caso, a proatividade dos servidores públicos pode ser determinante na preservação ou não da memória institucional da administração pública federal. Podem ser decisivos em assegurar a continuidade administrativa mínima necessária, para que não ocorram retrocessos ou rupturas em prejuízo do interesse público.
A clarificação de qual será o cenário dominante ocorrerá rapidamente. A Casa Civil da Presidência da República e o Ministério da Economia terão papel chave neste processo. É importante destacar o que se passará junto aos dirigentes vindos de fora do governo e à burocracia permanente, no caso dos cenários dois ou três prevalecerem.
Os quadros dirigentes ocupantes de cargos de confiança que não pertençam à estrutura permanente do Estado podem atuar de forma construtiva na transição, mesmo sabendo que sua permanência é difícil em função da natureza de sua situação. É o que farão profissionais comprometidos com o interesse público, com uma reputação a zelar e com disponibilidade para colaborar com os novos governantes. Este não será, provavelmente, um comportamento generalizado, à luz do que vem sendo a prática deste segmento de executivos em diferentes áreas do governo.
O caso da burocracia permanente é diferente e se diferencia em alguns subgrupos: aqueles que atuaram politicamente de forma engajada junto ao governo que sai, os que pautaram sua atuação por uma postura neutra, porém profissional ao longo deste período e os que, por circunstâncias variadas, atuaram na resistência às políticas e práticas de direções dos órgãos em que se encontram. Todos os três subgrupos podem atuar de forma proativa e colaborativa junto ao governo que chega, mas isso não pode ser tomado como dado.
A prioridade do governo que entra é reduzir a assimetria de informações deste momento, de modo a que se possa organizar, da forma mais aderente possível, junto à realidade com a qual se deparará. Identificar bons quadros na administração que se encerra, permanentes ou de passagem, é um desafio complexo, mas que pode auxiliar a equipe de transição e o novo governo a navegar no difícil início de gestão que se antecipa. Muita gente boa atuou nestes últimos quatro anos de forma profissional e republicana, a despeito de, em muitos casos, esta não ter sido a prática dos dirigentes do primeiro escalão do governo que se vai.
Este é um momento de reconstrução, de regeneração e de fundação de uma realidade nova na administração pública federal. Não é hora para revanchismo ou retaliação, mas para justiça e reparação, de olho no futuro, no passado. Toda ajuda é necessária.
PS: Os episódios de domingo envolvendo a Polícia Rodoviária Federal causaram um dano profundo a uma corporação profissional que sempre gozou de grande prestígio junto à sociedade brasileira. A forma como a Justiça e o novo Executivo lidarão com o episódio fará diferença para o aprendizado político institucional do país.
*Professor da Ebape-FGV e presidente do Conselho de Administração do República.org. Integra a lista dos 100 acadêmicos mais importantes do mundo pelo portal Apolitical
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