Existem momentos em nossas vidas que se tornam inesquecíveis. Para mim, visitar a ilha de Parintins em junho de 2022 se tornou um deles. Foram dias memoráveis na ilha, onde participei na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) da III Jornada Pan-Amazônica de Folkcomunicacão e do Boi Garantido.
Conhecer o Prof. Marcos Moura da Ilha de Parintins, ligado ao Instituto Ajuri e ao Boi Garantido aconteceu com uma proposta educacional para quilombos e populações ribeirinhas. Foram cadernos didáticos e vídeos sobre a história dos quilombos e tribos da Amazônia. Numa parceria muito feliz, o CEAP -Centro de Articulação de Populações Marginalizadas aqui do Rio de janeiro e o Instituto Cultural Ajuri efetivaram a Escola Afro-Amazônica tendo como proponente o Instituto de Desenvolvimento Artístico, Educacional e Cultural Manaus com o apoio do Governo do Estado do Amazonas.
O Prof. Marcos me indicou para um encontro na UFAM sobre Jornalismo e manifestações culturais. Foram três dias que possibilitaram a apresentação de sete mesas de professores ligados à comunicação de manifestações populares do Amazonas, Pará, Acre, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Discutimos jornalismo em tempos de crise, multi territorialidade e governança dos povos da Amazônia, educação para a cidadania, vozes da Amazônia como resistência e decolonidade. Tivemos várias apresentações culturais do Instituto Ajuri e do Boi Garantido, já que o diretor do curso de jornalismo, Dr. Allan Rodrigues e o diretor do Instituto Ajuri, Prof. Marcos Moura, nele atuam. Analisamos muito a necessidade de diálogo da Universidade com os saberes ancestrais das comunidades pretas e indígenas, além da revisão da história que invisibiliza e distorce os fatos, num autoritarismo exacerbado que reprime as manifestações artísticas populares e que semeia a ideia de que o povo é incapaz de compreender uma decisão complexa, o desqualificando sempre, além de não mostrar a violência que sempre ocorre com esses grupos.
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No último dia da III jornada acadêmica saímos da UFAM e fomos levados para assistir o ensaio técnico dos Bois no Bumbódromo de Parintins! A cidade fervilhava de gente de todos os cantos da Amazônia e do país. Muita emoção com pessoas vestidas de vermelho e branco ou azul e branco. Havia muita movimentação nas ruas e muitas figuras conhecidas da televisão e dos desfiles da Marquês de Sapucaí, como Milton Cunha, Fábio Fabato, Luís Gustavo, equipe do SRZD, Jerônimo da Portela e muitos outros.
A lenda do Boi Bumbá, tão presente em todo o país aponta diretamente para o universo mítico da cultura afro-brasileira. Para a fé e liberdade de ser. Nele temos como personagens centrais Pai Francisco e Mãe Catirina, um casal de negros trabalhadores de uma fazenda. Quando Mãe Catirina fica grávida ela tem desejo de comer a língua do boi de estimação do amo. Para saciar o desejo de sua esposa grávida Pai Francisco mata o boi, mas combina sua ressureição com um pajé amigo. Percebendo a morte do boi, o senhor procura Pai Francisco, que chega com o pajé que faz seus rituais e ressuscita o boi para a alegria de todos.
O Boi neste auto representa a resistência de descendentes de africanos e de povos originários para a preservação de sua identidade e de seus sonhos, que se revelam no Bumba meu Boi do Maranhão, nos Bois de Parintins, nos Bois de Mamão, enfim em todos os lugares em que se encontrem o povo preto e indígena. Em Parintins temos os bois Garantido e Caprichoso, que dividem a cidade em território vermelho e território azul. Meu contato com o Boi Garantido vem de muitos anos por conta de sua participação na escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, que também usa o vermelho e branco do orixá Xangô como representação. O Garantido é conhecido como o boi do amor e da fé. Seu boi é branco com um coração vermelho bordado entre os chifres e também se relaciona a Xangô.
PublicidadeOs bois ficaram dois anos sem seu festival por conta da pandemia, sendo que suas alegorias são famosas e seu pessoal atua fazendo muita movimentação em alegorias de escolas de samba do Rio de janeiro e de São Paulo.
Neste ano de 2022 o Garantido trouxe como enredo Amazônia do Povo Vermelho. Os bois se apresentam durante três dias, tendo uma imensa participação da plateia que também é avaliada pelos jurados. Cada dia mostra um aspecto do enredo apresentado, com história, fantasias e alegorias diferentes.
Fui convidada a participar do segundo dia, já que no primeiro tiveram como tema Povo Vermelho como Brasa, tratando de suas matrizes indígenas e caboclas, mostrando a luta de resistência do povo vermelho para não ser visto como obstáculo ao progresso, por ser exatamente o contrário, já que buscam manter a Amazônia protegida.
Na segunda noite buscaram trazer a Cabanagem tratando do direito à demarcação de terras,a equidade entre todos os gêneros e etnias, lembrando negros e negras que brincaram de boi em Parintins, fazendo do “bomba” um meio de luta e uma forma de resistência, enfatizando um Brasil indígena , onde vidas negras importam. Mostraram a Cabanagem trazendo uma toada de Gabriel Moraes/Joel Almeida/Naferson Cruz e Rubem Alves com versos como este:
Batuques ressoam na luta
E libertam o povo da dor
Cantos insuflam esperança
Que soa num tempo opressor
(…)
Canto, bato no peito
O meu folguedo é garantido
É liberdade, é igualdade
Amazônia do povo de alma
Vermelha
Vai pra rua o povo cantar!
A convite do Dr. Allan Rodrigues participei na Revista do Boi Garantido e estive presente nesta segunda noite do Garantido, onde fiquei muito emocionada com a homenagem que me prestaram após falarem da Rainha Nzinga de Angola e das lendárias Xandora e Ticê da tribo tupi-guarani. Representei as mães pretas que o Brasil criou. Foi um momento muito lindo ser homenageada pelo Boi Garantido como mulher negra ativista e acadêmica, ao lado de uma representante da tradição indígena no Amazonas. Este país foi construído a muitas mãos e etnias.
No terceiro dia o Boi Garantido trouxe a Utopia Vermelha, acreditando que se pode mudar o mundo com paixão, arte e criatividade, situando que Lindolfo Monteverde , humilde pescador da Baixa São José trouxe em 1913 a brincadeira do boi para Parintins, que tomou conta da cidade , sendo comparado a Paulo Freire, por conta da transformação do verbo esperar em “esperançar”, já que foram atrás das utopias, juntando-se com outros para fazer diferente, resistindo à invisibilidade social, apoiada em suas tradições e afirmando suas identidades. A Utopia Vermelha busca reafirmar o compromisso do fundador do Boi garantido de resistir culturalmente em favor da valorização da diversidade cultural, justiça social e respeito ao meio ambiente.
O Garantido não foi o vencedor deste festival de 2022, mas todos comemoram no curral, como chamam a quadra do Garantido, animados pelo Prof. Marcos Moura, seu filho Orlan que foi o Pai Francisco, com o Pajé Paketá e demais membros do Boi, acompanhados pela Batucada do Garantido, louvando a vida e sua capacidade cantar, dançar, produzir alegorias gigantescas e maravilhosas, que resistem, encantam e ilustram suas histórias.
Nesses dias vivi um encontro profundo com o povo brasileiro e com minhas ancestralidades, agradecendo a Marcos Moura do Instituto Ajuri que me acolheu em sua residência, que produz um trabalho educacional e musical, já que compõe toadas para o Garantido e que me possibilitou participar da III Jornada da UFAM, de vivenciar o Boi Garantido, além de receber o título de Sócia Benemérita do Instituto Cultural Ajuri, me tornando assim, mais um membro da família Garantido.
O boi bumbá representa nossa alma guerreira que resiste, canta sambas e toadas, além de iluminar o território da família Garantido e de todos aqueles que acreditam nos seus e em suas histórias em todo o território brasileiro.
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