Frederico Turolla e Bruno Azambuja *
Uma economia competitiva pressupõe a mobilidade de pessoas entre as cidades de distintos estados. Essa movimentação permite a realização de negócios, a promoção do lazer e turismo, a flexibilidade na alocação do pessoal das empresas em operações distantes, o reforço dos vínculos étnicos dos migrantes e até mesmo a utilização eficiente da malha do Sistema Único de Saúde (SUS) com deslocamentos de pacientes e acompanhantes. Seria difícil subestimar a importância das conexões rodoviárias de passageiros no território brasileiro, que oferecem também fluidez para pequenas cargas e encomendas.
As famílias das principais capitais brasileiras gastam anualmente, com transporte interestadual por ônibus, cerca de 0,1% do seu orçamento. Pode parecer pouco, mas isso significa um dispêndio anual de mais de R$ 7 bilhões com viagens rodoviárias entre as unidades da Federação. Esse gasto é mais concentrado no segmento das famílias de menor renda, com menor acesso ao transporte aéreo, que fica com mais de 0,5% do orçamento das famílias e pesa mais sobre rendas maiores.
O uso de ônibus nas viagens interestaduais não é uma ameaça à expansão da malha aérea. O ônibus a complementa, realizando etapas finais até destinos regionais não servidos pelo avião, inclusive entre estados diferentes. Além disso, o ônibus funciona como um colchão para choques de demanda: a ampliação de uma frota de ônibus pode ser feita em meses, enquanto a chegada de novos aviões pode levar anos. Isso é especialmente importante para famílias de menor renda, para que continuem viajando quando os bilhetes aéreos ficam muito caros.
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Esse importante papel que o transporte coletivo interestadual de passageiros poderia desempenhar de maneira muito mais efetiva é hoje limitado pela insuficiente competição nos serviços conhecidos como TRIP (Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros), cuja regulação é atribuição da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). É o último segmento do setor de transportes de longa distância que permanece praticamente fechado à competição, procrastinando o que determina a própria lei setorial.
O setor aéreo já foi liberalizado à competição desde a Lei nº 11.182 de 2005 que abriu um regime de autorização, com efeitos notáveis sobre a inclusão de novos destinos na malha aérea brasileira. Até mesmo o setor ferroviário e portuário, no Brasil praticamente voltados aos segmentos de cargas, já foram liberalizados. O primeiro com a autorização de terminais privados pela Lei nº 12.815 de 2005 e o segundo com a introdução do Pró Trilhos através da Lei nº 14.273 de 2021. Em todos esses setores, a lei foi implementada pelas agências reguladoras.
A diferença para o TRIP é que, neste setor, a implantação da lei vem sendo procrastinada. A Lei nº 12.996 de 2014 introduziu o regime de autorização no país, sem limite de número de autorizações, ressalvando o caso de inviabilidade operacional, recentemente ampliado para incluir inviabilidade técnica e econômica. Entretanto, esse regime não funciona na prática.
Em uma rápida consulta à base de dados da ANTT, verifica-se que há mais de 33 mil solicitações de mercado (ainda sob a Resolução no. 4.770 de 2015) com status de “Aguardando Análise” há 829 dias em média, sendo que o prazo mínimo que aguardam é hoje de 691 dias e o mais antigo aguarda há 1.355 dias. Há ainda 11 mil solicitações de pelo menos 550 dias em “aguardando convocação”, outros 6,9 mil “convocados” e 3,4 mil “pendentes”.
Apenas 817 pedidos ou apenas 1,2% de todas as 67,7 mil solicitações de mercados de TRIP se encontram no status “concluído”. Considerando que o número de autorizações ativas é hoje de 68,8 mil, isso mostra quantos cidadãos de cidades pequenas, médias e grandes em todo o Brasil estão sendo privados de novas ligações rodoviárias, ou estão pagando mais caro por suas passagens pela falta de concorrência nas ligações já existentes. É possível que muitos prefeitos sequer tenham conhecimento do prejuízo que essa procrastinação traz a seus municípios, sem saber dos importantes ganhos de competitividade que poderiam obter com a modernização desse mercado.
Agravando a situação, em abril deste ano, a ANTT praticamente obrigou as empresas a renunciarem a pedidos de autorização que não fossem para ligações novas, de mercados não servidos, ou inéditos, através da Resolução no. 6.013 de 2023. A proposta seria de ampliar a capilaridade do TRIP, aparentemente beneficiando municípios ainda não servidos, mas terá como resultado exatamente o contrário.
Os operadores de transportes funcionam em redes: sendo obrigados a desistir de ligações já solicitadas, deixarão de servir novos mercados. Tanto que já se passaram 4 meses desde a publicação da Resolução no. 6.013 e o relatório de Mercados Novos da Resolução disponibilizado pela ANTT informa haver 151 requerimentos apresentados após a sua publicação em status “aguardando convocação” e outros 36 anteriores, bem como 195 antigos aguardando análise. Por outro lado, o total de seções distintas na época da Resolução, em abril de 2023, era de 54,6 mil e passou, logo no mês seguinte, para 49,4 mil, uma variação negativa de 9,4%.
Em todo o mundo, é justamente a competição, com a formação de redes, que aumenta a capilaridade dos destinos. Não existe a possibilidade de se “forçar” isso com uma medida regulatória que só cria distorções e tem efeito contrário ao planejado.
O sinal mais duro da ANTT contra a modernização do TRIP brasileiro veio com uma nova proposta regulatória, apresentada no mês de julho. Nessa nova minuta foi proposto um sistema complexo de avaliação de entradas que irá causar novas procrastinações e, na prática, fechar mercados importantes à entrada de novos operadores, assegurando a posição de monopolistas ou de oligopolistas a empresas incumbentes nos principais mercados, afetando negativamente toda a rede de transportes de passageiros do país.
Os maiores prejudicados com o novo regime regulatório proposto pela ANTT serão os usuários brasileiros, mas não se pode deixar de mencionar o sacrifício à competividade dos municípios. Estes já vêm deixando de obter importantes ganhos com o potencial inexplorado que poderia ser descortinado com a ampliação da competição nos ônibus interestaduais. Com o novo regime regulatório proposto pela ANTT, esses ganhos restarão comprometidos ao longo da próxima década e o TRIP continuará ostentando o título de setor mais atrasado do transporte de longa distância no país. Os municípios de um país continental merecem muito mais que isso.
* Frederico Turolla é advogado e fundador da PEZCO Economics, consultoria especializada em temas econômicos e de infraestrutura.
** Bruno Azambuja, diretor-executivo da Associação Brasileira pelo Futuro da Mobilidade (AFMOB)
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