Manuela Löwenthal *
Nos últimos anos, diversos países ocidentais passaram a se organizar em grupos que se sentiam lesionados por avanços de pautas sociais ligadas às minorias, traduzidas na agenda progressista rotulada como tirânica por esses grupos compostos por cristãos, políticos e parte da classe média. Os avanços em torno de igualdade social, de direitos civis e de ações afirmativas impostas por governos comprometidos com a sociedade e a justiça social foram considerados uma verdadeira ameaça aos grupos conservadores, como demonstra a professora de Ciência Política da Universidade da Califórnia Wendy Brown, em seu livro Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente.
Diversas manifestações que expressavam a insatisfação com avanços democráticos passaram a ocorrer na Europa e no mundo. Um exemplo disso foram as expressivas manifestações contrárias ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, realizadas em Paris e em outras cidades francesas durante os anos de 2012 e 2013, as quais surpreenderam o mundo por terem ocorrido em um país que por muito tempo foi considerado um exemplo de secularismo e liberdade sexual.
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Ainda em 2012, várias manifestações contra a união homoafetiva reuniu diversos grupos conservadores em outros países europeus como Itália, Croácia, Espanha e Eslovênia. Em comum, elas reinvidicaram publicamente o tradicionalismo patriarcal e a impossibilidade de novas configurações familiares.
A defesa dos valores tradicionais se tornou pauta central nos últimos anos em campanhas políticas do Estado Russo, tendo sido projetada pelo Kremlin com o apoio da Igreja Ortodoxa. Há alguns anos na Polônia, o partido governista atacou a homossexualidade e na Hungria, o atual Primeiro- Ministro Viktor Orbán, posiciona-se cada vez mais contrário ao avanço de pautas que envolvem os direitos de minorias sexuais, como afirma o sociólogo David Paternotte em entrevista publicada no portal espanhol El Diário.
Foi com grande surpresa que o mundo assistiu ao avanço de pautas de extrema direita e à eclosão de manifestações conservadoras bem sucedidas na Europa, um continente que até então era considerado exemplo em termos de avanço na igualdade de gênero, direitos sexuais e humanos. Este cenário forçou a reação de movimentos sociais e grupos de esquerda.
PublicidadeDiversos estudiosos do tema relatam uma apropriação do cristianismo por grupos de extrema direita na Europa. A identidade cristã é acionada para reforçar um pertencimento cultural, criando a ideia de pureza nacional e ideologia política.
Dessa forma, uma série de líderes populistas sem nenhuma profundidade teológica se utilizam do cristianismo para criar uma “diferenciação” entre aqueles que fazem parte do grupo e aqueles que estão fora do grupo. Essa diferenciação alimenta um sentimento de pertencimento muito potente e eficaz para a mobilização. É construída a ideia de que há inimigos a serem combatidos, pessoas que não compartilham de determinada visão de mundo, projeto de civilização e progresso. E a partir de um poderoso discurso bélico é mobilizada a ideia de que essas pessoas devem ser combatidas. Na Europa, essa “barreira invisível” entre grupos pode ser observada através da marginalização e exclusão dos não cristãos, como por exemplo os mulçumanos.
Um movimento muito semelhante ocorre no Brasil atual. Grupos de extremistas reivindicam a legitimidade das tradições cristãs como parte da cultura brasileira para retirar a legitimidade das demandas progressistas relacionadas aos direitos das mulheres, à questão de gênero e aos direitos reprodutivos. O inimigo atacado são os grupos à esquerda, considerados subversivos e uma ameaça à família e à ordem.
O ex-presidente Jair Bolsonaro é um bom exemplo de apropriação do cristianismo por lideranças populistas. Bolsonaro assumiu desde o início que seu governo seria alinhado com a Frente Parlamentar Evangélica, aderindo um discurso que buscava conquistar cristãos. Sua busca por uma roupagem cristã foi reforçada ao longo do governo pela alegação de que o Estado é laico, mas a sociedade não. Em diversos discursos públicos, o ex-presidente citou versículos bíblicos e destacou que em seu governo seria “terrivelmente cristão”. Bolsonaro reforçou um discurso bélico que estimulou uma visão do adversário político como inimigo a ser aniquilado, impossibilitando a convivência das diferenças e a possibilidade de discordância, em um posicionamento tendencioso ao autoritarismo.
Embora Bolsonaro se autodenominasse a voz do verdadeiro cristão brasileiro, pouco recorria à teologia. Assim como ocorre em outros países, a extrema direita se afirma cristã mas age de forma contrária a valores centrais do cristianismo, como a igualdade, a piedade, a compaixão e o respeito, em um movimento que busca o sequestro populista da religião.
Mesmo sem Bolsonaro no poder, grupos de extrema direita continuam se utilizando da identidade cristã para legitimar suas reivindicações e, no caso brasileiro, atos terroristas. Bolsonaro serviu como o motivo para esses grupos emergirem no Brasil, porém, o que tudo indica é que a partir de agora eles não irão mais precisar de Bolsonaro para permanecerem reivindicando sua agenda conservadora forjada em uma falsa identidade cristã.
Isso mostra que esse movimento não é uma tendência isolada, mas sim, uma estratégia global. Porém, esse fenômeno se manifesta de forma diferente em cada país, de acordo com a história, contexto social, econômico, político e cultural de cada local.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Manuela Löwenthal é doutoranda em Ciências Sociais pela Unifesp, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora do projeto Temático “Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo”, financiado pela Fapesp. Atua também como professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.
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