O debate sobre linguagem neutra está se acirrando, liderado de um lado por pessoas que acreditam na liberdade de expressão de gênero e que questionam o binarismo de gênero (masculino | feminino) e, de outro lado, polarizado por extremistas fundamentalistas que querem manter o status quo e são adeptos no uso da desinformação (fake news) para manipular parte da opinião pública em contrário.
A título de definição, segundo reportagem da Agência Diadorim, a “linguagem neutra considera o uso da letra “e” em vez de “o” ou “a”, em substantivos, e a inclusão dos pronomes “elu”, “delu”, “ile” e “dile”, no idioma.” (https://bit.ly/3uPLZc5) Em artigo de opinião na Folha de S.Paulo, André Fischer afirma que “essa iniciativa é válida e justificável para incluir e dar voz a pessoas não binárias, de gênero fluido ou transgêneras que não se enquadram no padrão de gênero. No caso do plural, também traria a vantagem de evitar o masculino genérico, que torna o feminino e as mulheres intencionalmente invisíveis”.
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Por outro lado, também de acordo com um levantamento da Agência Diadorim, no Brasil atualmente há 34 projetos de leis (em 19 estados e no Distrito Federal) para impedir uso da linguagem neutra, principalmente na educação e na administração pública, e também no campo de produções culturais. Uma lei desta natureza acaba de ser sancionada em Rondônia. Vamos recorrer às “barras da lei”. Alô, STF!
Vejo que mudanças na linguagem não podem nem ser impostas e nem proibidas. A linguagem não é estática, não é perene. É dinâmica e evolui constantemente. Perto da minha casa tem um prédio escolar construído em 1904. Na parede consta a palavra “Gymnásio”. Em relativamente pouco tempo, esta forma de escrita ficou obsoleta. Um exemplo clássico da evolução da língua é a transformação de “vossa mercê”, “vossemecê”, “vomecê” e depois em “você”, bem como sua mudança da segunda pessoa do plural para a terceira pessoa do singular. Algumas pessoas mineiras vão ser presas por falarem “ocê” ou “cê”? O uso da linguagem neutra está nas ruas, é uma realidade. Faz parte da evolução linguística constante.
Não são leis ou decretos, não é censura ou proibição, que vão impedir o que vem acontecendo com os idiomas há milênios. Ou voltamos todos e todas para o latim clássico? As mudanças na linguagem também refletem as mudanças sociais e culturais. Sobretudo entre os adolescentes e jovens, está nitidamente visível um afastamento dos padrões rígidos de masculino e feminino, rumo a maior fluidez de gênero. Não podemos estancar uma discussão de uma linguagem que está nas mídias sociais, mas empresas, nas famílias, na sociedade, nas mídias convencionais e em breve em uma novela pertinho de você.
Tais projetos de lei estão na contramão da Base Nacional Comum Curricular, entre outros marcos normativos da educação brasileira, que prevê como uma competência específica a ser adquirida no processo educativo formal a habilidade de “Compreender as línguas como fenômeno (geo)político, histórico, cultural, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo suas variedades e vivenciando-as como formas de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como agindo no enfrentamento de preconceitos de qualquer natureza” (p. 494).
PublicidadeAs proposições legislativas acima relembram todo o debate acerca da noção falaciosa e fracassada de “ideologia de gênero”, uma desinformação violentamente disseminada na tentativa de impedir a efetiva igualdade de gênero de mulheres e meninas e o respeito à diversidade sexual, também objeto de legislações inconstitucionais de proibição do assunto na educação, a maioria já derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Outro paralelo é o aproveitamento da polêmica para ganhar visibilidade e apoio em eleições vindouras. A linguagem inclusiva será o novo “kit gay”? Pior ainda é que o exercício da liberdade de expressão, inclusive expressão de gênero, desperta reações violentas que vão além de proposituras legislativas que são um subterfúgio para oprimir e silenciar as mulheres, as ditas “minorias sexuais” e os usuários da “linguagem neutra”, e se manifestam na violência psicológica e física contra quem “ousa” ser diferente. Será que esses políticos não poderiam empregar melhor seu tempo fazendo esforços para melhorar a educação, a saúde, a segurança pública, os direitos humanos…? Parece que estão procurando por pelo em ovo, ou chifre em cabeça de cavalo.
A linguagem não é como sistema binário da informática: 0 e 1. Não tem só “a”, “o” e nem “e”. Tem o alfabeto inteiro. Somos todos arco-íris. A sexualidade não é tão 8 ou 80. Entre esses números, temos mais 72 possibilidades. Não é tão preto e branco. Tem muitos tons de cinza. A sexualidade é um oceano, e não adianta querermos fazer dela um aquário. No mundo há aproximadamente 8 bilhões de pessoas. Assim sendo, há 8 bilhões de orientações sexuais, 8 bilhões de identidades e expressões de gênero. O arco-íris mostra isso: você pode ser verde, pode ser vermelho, pode ser amarelo, pode ser a cor que quiser, inclusive nenhuma. Não podemos deixar a família, o Estado, a religião, a sociedade, a cultura, a política, a mídia, ou o outro dizer o que é bom para cada pessoa. Devemos respeitar todas as pessoas, independente de seu jeito de ser.
Pessoalmente, não defendo a ditadura do politicamente correto. Eu sou a favor da democracia, do respeito, da comunicação não violenta e não deturpada, da empatia comunicacional. Precisamos de linguagem e comunicação inclusivas.
A linguagem da norma culta foi feita por quem? Podemos questioná-la, sim. Podemos mudá-la, sim. Mas isso requer tempo, e não imposição de grupos, decretos ou leis. Censura jamais! Não aceitaremos o Index Librorum Prohibitorum. Não podemos interditar o debate. Nesse sentido, vamos novamente recorrer ao guardião da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal.