Melillo Dinis do Nascimento *
Em 2022, quando cunhei o termo “rejeitor”, para definir a mudança de uma parcela do eleitorado brasileiro, pensava mais na figura de linguagem que em termos analíticos. Era um fenômeno ainda em construção que apareceu com muita mais força em 2024, nas eleições municipais. O “rejeitor”, em muitos casos, foi o vitorioso nas eleições, mesmo que não tenha eleito ninguém.
Uma consideração. Tem crescido no eleitorado um sentimento de desconfiança com a política. Nada novo. É algo ancestral! Decorre da falta de confiança cívica. E, vamos combinar, que nos últimos tempos esta realidade tem gerado descrença, insatisfação e rejeição em relação às instituições, como o parlamento, os partidos políticos, os governantes, o judiciário, a polícia… Há um desgaste, um cansaço, um desânimo, enfim, que repercute na percepção de uma parcela do eleitorado acerca dos repetidos desafios da política na democracia, especialmente em relação às eleições. O grau de aceitação e de tolerância com o processo democrático tem como resultado o crescimento de um tipo de populismo autoritário. Para complicar, quando se coloca a democracia em uma avaliação, apesar de suas inúmeras qualidades, muitos dos políticos e lideranças são sintomas e não a causa de suas crises.
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No Brasil não é diferente. E no mosaico de explicações sobre o período eleitoral, precisamos falar sobre o “rejeitor”. Ele se transformou em um fator para entender a política, dentre as várias mudanças nas eleições. Concentro-me nos últimos acontecimentos eleitorais no Brasil, não sem afirmar que esta não é a única explicação possível. O “rejeitor” não vota a favor. Ele vota contra: um determinado político, grupo ou partido. Ou não vota, também numa forma de desacreditar o sistema eleitoral, os políticos e a política. Há dois tipos de “rejeitores”: o “rejeitor” insistente; e o “rejeitor” desistente. Vejam que já ganha ares de teoria.
O “rejeitor” insistente vota muito menos pelas opções decorrentes de uma escolha racional, de uma adesão a um projeto ou a uma determinada candidatura. Ele vota muito mais para evitar que o rejeitado seja eleito. É uma posição que tentar eleger o menos pior, quem menos afeta o “rejeitor” ou em quem menos ele desacredita! É uma aposta ao contrário.
Há um segundo tipo. O desistente. Cansado, cabisbaixo e rabisperno com a política e os políticos, é o “rejeitor” que desistiu de votar, de participar e de confiar na esfera pública. Ele, de alguma forma, alienou-se.
PublicidadeEsta personagem é mais complexa. Vejamos o número excepcional de abstenção eleitoral nas eleições municipais de 2024. E de alienação eleitoral. Em quase todos os municípios brasileiros. Em uma eleição, as abstenções representam o número de eleitores que não compareceram para votar (claro que nem todos são “rejeitores”, alguns não foram votar mesmo por impossibilidade real). A não participação eleitoral (abstenção), somada àqueles eleitores que comparecem às urnas, mas optam por anular ou votar em branco, caracteriza a alienação eleitoral.
Dos quase 34 milhões de brasileiras e brasileiros aptos a votar no último domingo (27), no segundo turno das eleições municipais 2024, cerca de três em cada dez eleitores não compareceram às urnas, de acordo com os números pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A abstenção registrada foi de 29,26%, uma média superior ao que ocorreu no primeiro turno, quando o índice de ausência foi de 21,71%. Alguns exemplos, apenas para fixarmos o argumento que é além da alienação eleitoral.
Em São Paulo, conforme o Pedro Sales nos informou aqui, o número de eleitores que se abstiveram, votaram nulo ou em branco em São Paulo superou o total de votos obtidos pelo prefeito reeleito, Ricardo Nunes (MDB): 42% de “rejeitores”. Nunes obteve 3.393.110 votos (59,35% dos válidos), enquanto Boulos recebeu 2.323.901 (40,65%). Em 2020, foi de quase 45% de rejeitores.
Em Porto Alegre houve recorde. Enquanto 406.467 eleitores decidiram que Sebastião Melo, do MDB, continuará prefeito por mais quatro anos, outros 381.965 optaram por não ir às urnas em Porto Alegre. Isso representou uma abstenção de 34,83% do eleitorado, a maior registrada entre as capitais neste segundo turno. É a maior abstenção da história da capital gaúcha. O percentual superou o primeiro turno de 2020 (33,08%), em meio à pandemia da Covid-19. A diferença entre o total de abstenção e a soma de votos recebidos por Melo é menor do que o número registrado de votos brancos (27.249) ou nulos (26.811). Foram apenas 24.502 eleitores a mais que decidiram votar no candidato do que os que optaram por não ir às urnas. Uma das explicações foi a quantidade de eleitores que perderam os documentos com as enchentes. Pouco provável. Mas é que o que quer acreditar a justiça eleitoral.
A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Carmen Lúcia, quer até dezembro deste ano propor estudos com base nos dados e nas análises possíveis. Aliás, a cidade em que ela votou, Belo Horizonte, registrou números impressionantes. Com 636.752 (31,95%) de abstenção, a capital mineira teve o maior número para uma eleição desde 1998, início da série história do TSE. Outros 46.236 eleitores votaram em branco, e 61.885 anularam. Fuad Noman (PSD) obteve 670.574 votos, enquanto o adversário, Bruno Engler (PL), recebeu 577.537. Basta somar.
Em 2020, com a pandemia de covid-19, as eleições municipais foram um marco na abstenção. Se compararmos com as eleições de 2016, em 2024, em quase todas as cidades cresceu a falta de eleitores ou de votos válidos. Apenas em Fortaleza, dentre as capitais, 2024 teve menor a abstenção que em 2016. Há explicações, desde a facilidade de justificar a ausência (uma boa medida), o envelhecimento da população que com mais de 70 anos tem o voto facultativo (9,7% do total de eleitores, TSE), as campanhas de desinformação sobre o voto eletrônico e a grita dos perdedores para que seus eleitores não votem, até disputas de candidatos com alta rejeição. Há outras.
Os explicadores vão melhorar as análises e ajudar o TSE. Eu também quero colocar um tempero. No panorama dos processos eleitorais em nosso país, o “rejeitor”, cada um com os seus subtipos (que podem ser ampliados, melhorados e/ou contraditados), está mais presente. Haverá outras explicações. Tem muito gente boa que acredita que determinados índices de não participação eleitoral são não apenas aceitáveis, mas até mesmo desejáveis para a estabilidade democrática. Outra turma, igualmente de gente fina, elegante e sincera, vê esta quadra como preocupante, e que pode significar desde um déficit de legitimação do regime até sinais de desagregação social.
O fato é que o “rejeitor” está diante de nós. Tanto o insistente quanto o desistente. Eles circulam pelas cidades, entre nós ou por nós mesmos, especialmente nas eleições. Há soluções? Não sei bem. Creio que temos uma perda de qualidade da democracia. São tempos em que muita gente prefere solucionar os problemas políticos por meio de um grande grupo de WhatsApp, os partidos políticos são, em sua maioria, pequenas empresas com grandes negócios, e há uma quadra de hiperpolitização de tudo e de todos. Depois, há uma crise do voto obrigatório que ilude as estatísticas e a relação com o eleitor/“rejeitor”. Não vejo o eleitor a desaparecer. Cada vez mais, entretanto, vamos conviver com o “rejeitor”, esse nosso conhecido.
* Melillo Dinis do Nascimento é advogado e analista político em Brasília.
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