No Estado moderno, a política, como arte de governar, possui três dimensões: uma institucional, a forma como se organiza o sistema de poder; outra processual, o modo como as instituições decidem, negociam e resolvem conflitos; e uma terceira sobre o conteúdo das políticas públicas.
Na divisão clássica dos poderes, o Legislativo legisla; o Executivo executa, e o Judiciário, além de julgar, resolve os conflitos, mas todos costumam transbordar no exercício de suas competências e atribuições, por isso é que existe o sistema de freios e contrapesos próprio dos regimes democráticos e republicanos, pelo qual um poder controla os excessos do outro.
Algumas Constituições, nas palavras de Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, dividem os poderes e suas instituições entre os que governam e os que impedem o desgoverno, incluindo o Executivo e o Legislativo no primeiro eixo e o Judiciário, o Ministério Público, os Tribunais de Contas e a Polícia no segundo eixo.
Na nossa Constituição, o art. 144 atribui às Forças Armadas a garantia dos poderes constitucionais, que atuam, nos termos da Lei Complementar 97, de 1999, sob a responsabilidade do Presidente da República, cabendo-lhe a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. O sentido e alcance dessa função, porém, não estão claramente definidos, mas, em qualquer condição, não podem elas sobrepor-se ao exercício legítimo e regular das funções constitucionais de qualquer dos Poderes, ou arvorarem-se no papel de “poder moderador”.
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Em qualquer dessas classificações e hipóteses, os titulares dos poderes, como representantes legítimos e legais dessas instituições, precisam dialogar para a consecução da paz social e dos objetivos do Estado e da Nação, sempre em harmonia e com respeito à independência de cada poder, sob pena de conflito permanente.
Um chefe de poder, mesmo de um poder técnico como o Judiciário, que não se submete ao escrutínio do voto, e cujos membros são vitalícios, precisa ter estratégia para exercer bem sua missão e tomar as melhores decisões à luz do contexto histórico, e para tanto é fundamental ter visão política e acompanhar a conjuntura em suas diversas dimensões. Somente buscando conhecer o que se passa nos outros poderes, na política, na área social, na economia, nas finanças públicas, nos organismos multilaterais, nas igrejas, inclusive entre os militares, academia e forças sociais organizadas, é que terá clareza das oportunidades e ameaças e poderá promover o diálogo ou exercer protagonismo, tomando as melhores decisões em sua função representativa.
PublicidadeNo Brasil, a judicialização da política é enorme e compete aos tribunais superiores, especialmente ao Supremo, decidir sobre temas complexos e polêmicos, que provocam reações nos outros poderes e na sociedade. Cabe ao presidente do STF, que é também o presidente do Conselho Nacional de Justiça, e ao qual cabe velar pelas prerrogativas do Tribunal, representá-lo perante os demais poderes e autoridades e, essencialmente, dirigir-lhe os trabalhos e presidir-lhe as sessões plenárias e executar e fazer cumprir os seus despachos e decisões, saber o contexto em que tais decisões estão sendo tomadas para melhor defender as prerrogativas da Corte. E isso não se faz sem estratégia e diálogo.
Apenas a título de exemplo, algumas grandes conquistas do processo civilizatório no Brasil foram produto de decisão do STF e não do Poder Executivo ou do Legislativo, como: pesquisas sobre células-tronco, aborto, relações homoafetivas, demarcação de terras indígenas, dentre outras. Mesmo no âmbito político, decisões do STF mudaram drasticamente a conjuntura, como a vedação de contribuições eleitorais de pessoas jurídicas e a fidelidade partidária. A calibragem em pautar temas dessa magnitude requer senso de oportunidade e responsabilidade.
Assim, se em circunstâncias normais, em que todos os chefes de poderes tenham a real dimensão de suas atribuições e responsabilidades, o diálogo se faz necessário, em situações em que um dos chefes de poderes, especialmente do Poder Executivo – que é o chefe de Estado, chefe de Governo e comandante em chefe das Forças Armadas – assume um perfil de autossuficiência (heroico, controlador e confrontador), a estratégia e o diálogo se tornam ainda mais imperativos, inclusive para evitar tragédias e retrocessos.
Felizmente, nos primeiros 18 meses do governo Bolsonaro – um presidente da República antissistema, com estilo confrontador e perfil autoritário, sem qualquer sentido ou respeito aos ritos e liturgias do cargo de presidente – o Brasil contou com José Antônio Dias Toffoli na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) e com Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, respectivamente, presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que prudentemente buscaram o diálogo com todas as forças políticas, especialmente com o chefe do Poder Executivo, inclusive aconselhando-o à moderação e ao respeito às instituições e à democracia, e com isto contribuíram para reduzir o ímpeto autoritário do governo, sem ignorá-lo nem hostilizá-lo.
Graças a essa visão e ação estratégica desses três chefes de poderes, foi possível conter o ímpeto autoritário do presidente naquela fase do governo, na qual contava e continua contando com uma base fundamentalista e radicalizada e com forte apoio nas Forças Armadas e que – sem essa mediação e moderação – poderia ter tomado medidas antidemocráticas, sob a alegação de que os demais poderes estariam impedindo-o de governar. Umas das possibilidades, lembrada e estimulada pelo jurista Ives Gandra Martins, seria o uso das Forças Armadas, com base no art. 142 da Constituição, supostamente para a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, com intervenção em outros poderes.
Assim, sem a moderação do estilo confrontador e autoritário de Bolsonaro, o presidente não teria aderido ao sistema, inclusive com o ingresso de lideranças tradicionais em sua base de apoio e no governo, contra os quais fora eleito na onda antissistema das eleições de 2018. A entrada do Centrão na base e no governo dificulta aventuras autoritárias do presidente, inclusive porque as principais vítimas de um eventual fechamento de outros poderes seriam exatamente esses políticos profissionais, que vivem do exercício do mandato.
Deste modo, dialogar, entender o que está acontecendo, deve ser obrigação dos chefes de poderes, e se alguns não têm essa compreensão, os que a têm não podem se omitir e esperar que o pior aconteça. O exemplo do que está acontecendo na Ucrânia, pela ausência de diálogo, deve servir de alerta aos democratas brasileiros. A indiferença ou a soberba podem custar caro e buscar o diálogo não representa nenhum demérito a chefe de poder. Pelo contrário, é uma oportunidade para defender as prerrogativas do poder que preside e exortar os chefes de outros poderes a adotarem decisões corretas e de acordo com a Constituição, além de desfazerem equívocos e mal-entendidos.
Em período de extremos, de questionamento da legitimidade das instituições democráticas, nos quais os negacionistas estimulam a discórdia e o ódio, interditando o debate, quem dispõe de poder ou autoridade e puder contribuir para evitar retrocessos ou tragédias, tem a obrigação de fazê-lo, ainda que isto lhe custe incompreensões. A paz social está acima de qualquer vaidade pessoal.
Portanto, é a falta de diálogo e de estratégia que gera ruídos e sinais negativos na relação entre os poderes, e não o contrário. A ausência de interlocução para moderar o estilo confrontador do chefe do Poder Executivo deixa o caminho livre para fundamentalistas, especialmente assessores e militantes da base social do governo, reforçarem as convicções autoritárias do ex-capitão, inclusive aqueles que, de forma insana, defendem retrocessos como o “AI-5”, talvez sem saber, sequer, o que ele representou em termos de agravamento do autoritarismo quando de sua adoção pela ditadura militar.
Esta pequena reflexão vem a propósito do episódio recente, em que o presidente da República, ao editar um decreto para anular as penas impostas pelo STF ao seu aliado, Deputado Daniel Silveira, extrapolou seus poderes constitucionais, que neste caso se limitariam ao perdão à pena de prisão, além de criar uma espécie de instância que se sobrepõe ao judiciário e num caso de perdão a alguém que foi punido por afrontar um poder da República e ameaçar fisicamente seus membros titulares. De fato, o decreto incentiva e valida crimes contra as instituições democráticas, e dá proteção institucional para quem afrontar autoridades e poderes e até ameaçar o emprego de violência contra o STF e seus ministros.
Por tudo isso, a história há de registar o papel fundamental que aqueles presidentes de poderes tiveram nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, ao contribuírem para evitar atitudes e medidas autoritárias e antidemocráticas, que poderiam ter interrompido o mais longo período de democracia em nosso país. Em lugar de reconhecimento, receberam ácidas críticas, inclusive das forças à esquerda do espectro político, que não compreenderam o papel fundamental exercido por aquelas chefes de poderes naquele momento histórico.
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