Os Evangelhos registram o episódio da tentação de Cristo. O demônio se apropria de trechos das Escrituras – verdades eternas – para produzir sua infame rede de mentiras, na tentativa de fazer fracassar Aquele que não fracassaria jamais. Desde sempre foi tática do dito cujo sequestrar palavras de sabedoria, entremeando-as com meias-verdades e brandindo-as perante os filhos da humanidade para provocar confusão. Nos últimos tempos, brasileiros e brasileiras têm convivido com algo parecido, cotidianamente, com o profundo versículo de João 8:32 sendo brandido o tempo todo em suas faces, com risadas de escárnio e um tom de bazófia.
Parte da estratégia de fake news e manipulação populística envolve um sistema de antífrases, orwelliano, em que apregoa-se a verdade enquanto se vive na mentira. O Ministério da Verdade tem Satanás como titular, o Pai da Mentira, distribuindo certezas, teorias e opiniões de graça, em um verdadeiro bazar babélico – montando nos arredores daquela torre famosa de alguns loucos que julgaram ser capazes de alcançar Deus pelos seus próprios pés. Anuncia-se a verdade que liberta, entregam-se mentiras que acorrentam, em um mercado perverso, no qual compram e trocam todos os dias, infelizmente, muitos ingênuos e incautos, movidos por crenças sinceras a caírem em crendices abiloladas.
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Os comerciantes dessa verdade satânica são próximos aos comerciantes que Cristo expulsou do Templo. Ficam no adro, fingindo que o véu não foi rasgado e dizendo que o Santo dos Santos continua inacessível e que o acesso só é possível mediante a palavra do sacerdote. Dessa forma, legitimam seus apoiadores, encontrados entre grandes líderes professadamente evangélicos, que se beneficiam eles próprios da permanência justamente desse comércio de mentiras para manterem sua ascendência sobre seus públicos. Tal como os escribas e fariseus da época de Jesus, que, assentados na Cátedra de Moisés, a transformaram em veículo para a multiplicação de superstições, amuletos e tradicionalismos, para lucrarem em cima da consciência culpada de um povo que não tinha como atender a tudo aquilo.
“Hipócritas! Hipócritas!” Foi a acusação mais frequente que Cristo lhes fez. Atores, não fazem o que falam. Repetem incessantemente o versículo da verdade e seguem praticando a mentira em todos os seus atos. Como se a atuação no palco fosse capaz de livrá-los do julgamento – que, nos termos definidos por Cristo, acontecerá e será implacável. Entretanto, a atuação funciona para que sigam enganando muitas pessoas e por muito tempo, para prejuízo do proverbial dito que ninguém consegue enganar a muitos por muito tempo.
Em um mundo complexo, plural, moderno e tecnológico, as incertezas são muitas e crescentes. Haverá emprego? Haverá condições de vida? Haverá comida? Para se ficar em apenas algumas das dúvidas existenciais dos tempos presentes. As pessoas têm sede de certezas, para alívio de suas ansiedades desérticas. Nesse contexto, a demanda para o produto que os fariseus têm a oferecer seguirá forte. E o estoque de mentiras, por definição, é inesgotável.
Não há espaço, entretanto, na democracia, para a convivência com a reiterada mentira pública. Assim como não há espaço para a verdade revelada. A democracia traz em suas premissas a convivência com diversas verdades, portadas por crentes das mais diversas crenças. Antes de a democracia se estabelecer, havia a matança – eliminava-se simplesmente o vizinho que ajoelhava com o joelho esquerdo quando todos sabiam que o jeito certo de se ajoelhar era com o joelho direito.
PublicidadeCompreendendo-se que a única solução para a afirmação de determinada verdade seria a eliminação das verdades concorrentes, e seus portadores, os democratas retiraram a legitimidade dos argumentos aléticos do campo da discussão pública. Instaurou-se o princípio da convivência – uma ampliação do princípio cujus regio, eius religio (a religião dos súditos deve ser a dos seus reis). Esse serviu como base para a Paz de Augsburgo, encerrando décadas de matança entre católicos e luteranos. No presente, o princípio é “cada cabeça, uma sentença”, a cada um a religião de sua escolha, inclusive, se essa for a opção, a criação de uma inteiramente nova.
Como dissemos ao início, a prática de torcer a verdade para espalhar mentiras é antiga. Preocupado com ela em sua época, Dostoiévski afirmou que se eu tivesse que escolher entre Jesus Cristo e a verdade, escolheria Jesus Cristo. Fico com Dostoiévski. E com Cristo.