Leonardo Rossatto Queiroz*
Nos últimos cinco anos, usei dados públicos para pesquisar como evoluiu a capacidade de instituições municipais de enfrentar as mudanças climáticas. Como é impossível separar a vida acadêmica e a vida pessoal, esse se tornou um assunto inescapável na minha vivência em igrejas evangélicas, que só foi interrompida no período pela pandemia.
Existe um componente bastante peculiar quando você fala em ambientes evangélicos (talvez seja em ambientes religiosos em geral, mas o meu espaço de vivência é só o evangélico) sobre mudanças climáticas: logo isso vira um debate acerca da pertinência do tema. Mudanças climáticas existem? Como isso afeta a igreja? Qual é o posicionamento dos evangélicos sobre o tema?
Começo respondendo à última pergunta: não existe “posicionamento dos evangélicos” sobre o tema. “Evangélico” não é uma categoria monolítica, e nenhuma posição é comum a todos eles, exceto para os que definem o ser evangélico apenas pelo “crer que Jesus Cristo morreu e ressuscitou para salvar a humanidade de seus pecados”. Mas, em alguns anos de experiência, pude verificar algumas formas de negacionismo climático que aparecem frequentemente dentro das igrejas e gostaria de compartilhar essas percepções com você.
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1) O negacionismo pré-apocalíptico: esse era o tipo de negacionismo mais comum antes da pandemia nas igrejas neopentecostais, e o discurso era muito simples. Basicamente era algo como “Jesus está voltando, por que eu preciso me preocupar com mudanças climáticas?”. A ideia da “volta de Jesus Cristo” e do “arrebatamento” como uma expectativa imediata, largamente difundida nas igrejas com uma visão dispensacionalista do Apocalipse, torna todas as demais questões menos relevantes, e isso inclui as mudanças climáticas. O problema do argumento ser simples é que ele também é aplicado com muita facilidade aos eventos do cotidiano. Qualquer evento é analisado pela lente do viés de confirmação. Um exemplo notório: quando acontecem desastres, não é por causa das mudanças climáticas, mas são indicativos de que Jesus está voltando. E isso interdita completamente o debate sobre o assunto.
2) O negacionismo pré-apocalíptico conspiratório: depois da pandemia e com o aumento dos eventos extremos, porém, esse argumento começou a perder espaço para uma forma mais elaborada de negacionismo, também no âmbito do dispensacionalismo: o negacionismo conspiracionista. Essa modalidade de negacionismo incorpora o discurso da emergência do arrebatamento a uma retórica conspiracionista que também passa pelo viés de confirmação em relação à volta iminente de Jesus Cristo. A pandemia, por exemplo, era vista como estratégia para implantação de um “governo mundial”, o que, para boa parte dos dispensacionalistas, é prerrogativa para a volta de Cristo, uma vez que o governo mundial seriam o símbolo da besta e do falso profeta do Apocalipse. Com o arrefecimento da pandemia, as mudanças climáticas viraram o alvo; agora o argumento para a formação de um “governo mundial” é o dos extremos climáticos. E junto com esse argumento vem toda espécie de delírio conspiracionista, como “o uso de antenas HAARP para manipulação do clima”.
3) O negacionismo do Salmo 91: essa não é exatamente uma posição negacionista, mas é uma postura comum em igrejas em relação ao tema. É a noção de “mudanças climáticas existem – mas não irão me atingir”. A referência ao Salmo 91 explica: “Mil cairão ao meu lado, dez mil à minha direita, mas eu não serei atingido”. É uma lógica que concilia duas características muito populares na cultura pentecostal e neopentecostal: a ideia de que o cristão é especial e é protegido por Deus e a ideia de que “o mundo jaz no maligno”, então não há nada que se possa fazer. Essa lógica tem um efeito duplamente negativo em relação ao enfrentamento das mudanças climáticas: ao mesmo tempo em que desincentiva qualquer ação relativa ao assunto em “um mundo tomado pelo mal”, também leva o cristão a achar que por alguma intervenção divina ele não será afetado. No contexto do desastre no Rio Grande do Sul, esse tipo de negacionismo ficou notório com a viralização de fotos de igrejas alagadas, mas com suas fachadas intactas, em meio a destruição das enchentes. A mensagem era justamente a de que “Deus protege os seus”.
4) O desastre como punição divina: o argumento do desastre como punição divina não é novo e já apareceu inúmeras vezes na história do cristianismo. Mas agora também tem se aplicado às mudanças climáticas. Em relação ao Rio Grande do Sul, viralizaram vídeos antigos de pastores dizendo que o Rio Grande do Sul era o estado com a menor porcentagem de evangélicos do Brasil e isso provocaria o “juízo do Senhor”. Essa mentalidade é complementar ao argumento de que “Deus protege os seus”, afinal, o outro lado dessa moeda é justamente punir os que “não são seus”. Esse argumento é profundamente contraproducente no enfrentamento às mudanças climáticas, porque faz com que as pessoas comecem a achar que o sofrimento provocado pelos eventos climáticos é merecido. E é muito difícil convencer alguém que pensa desta forma de que desastres atingem da mesma maneira cristãos e não cristãos. E que as mudanças climáticas estão aumentando a frequência e a intensidade desses desastres.
A notícia boa é que existem cada vez mais pessoas dentro das igrejas que pensam além dessas simplificações argumentativas, que, quando não são negacionistas, são desmobilizadoras. E isso mudou muito nos últimos anos: em 2019, era bem mais difícil falar da relação do ser humano com a natureza na igreja do que é em 2024. Hoje, eu já consigo explicar que, para além da minha motivação acadêmica, a minha própria fé cristã ampara o cuidado com a natureza. Ideias que antes pareciam esquecidas, como a de que o ser humano foi incumbido de cuidar de um jardim, estão aos poucos voltando aos púlpitos. Ainda existe uma longa caminhada pela frente, mas a percepção do evangélico em relação às mudanças climáticas está tomando o mesmo rumo da percepção da própria sociedade: as pessoas estão compreendendo que o tema é importante, é urgente e demanda ações imediatas.
De algum tempo para cá, as pessoas pararam de me questionar da maneira como elas faziam no começo do texto. Elas começaram a me tomar como referência no tema, o que é bom. “Viu o que está acontecendo no Rio Grande do Sul? Horrível, né? Tem explicação para aquilo?”. O grande volume de desastres e situações climáticas anormais, como as frequentes ondas de calor do último ano, estão mostrando para as pessoas que sim, existe algo errado no clima. Boa parte delas ainda não sabem muito bem o que fazer a respeito do tema dentro das igrejas, mas algumas boas ações começam a surgir: reciclagem, consumo consciente, iniciativas de preservação. Grupos como o Renovar Nosso Mundo e o Nós Na Criação começaram a falar com mais intensidade em igrejas brasileiras sobre como conciliar uma visão cristã da vida e a preservação da natureza. A pauta climática está cada vez mais presente nas igrejas. O desafio é ela se sobrepor ao negacionismo, que por muitos anos se arraigou nas comunidades, envolvido por uma roupagem teológica, com implicações bastante sérias no cotidiano.
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* Leonardo Rossatto Queiroz é cientista social (Unicamp), pós-graduado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis (Uninove), doutor em Ciências do Sistema Terrestre (Inpe), especialista em políticas públicas no governo do estado de São Paulo e mestre em Planejamento e Gestão do Território (UFABC). Pesquisa implementação e avaliação de políticas públicas, perfil político de grupos religiosos e ação institucional contra as mudanças climáticas em escala municipal.
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