Sérgio Dusilek *
Há pouco tempo ouvi, de um querido pastor, seu lamento por buscar viver um Evangelho cada vez mais estranho aos evangélicos. Parece que ele pregava renúncia enquanto os demais pastores sacralizavam a ganância. Ele falava de resignação e de contentamento, enquanto os demais abordavam a conquista. Pregava sobre perdão, todavia os demais inflamavam os ouvintes com a vingança. Ansiava por compartilhamento, enquanto seus colegas celebravam a competição, comparavam os números de suas igrejas. De fato, muito do perfil do evangélico brasileiro e muitos evangélicos brasileiros pouco têm a ver com o Evangelho do Reino de Deus anunciado por Jesus.
Este envelopamento, imagem que tomo emprestado da indústria automotiva, se deve a alguns fatores. O primeiro deles é a transformação do conceito de igreja como comunidade de fé que constrói artesanalmente sua experiência religiosa, em corporação religiosa. Igrejas assim lidam com processos. Desde o primeiro momento de sua entrada em uma corporação religiosa, você se sente numa esteira de montagem. Todo mundo sabe qual será o seu próximo passo ali, para onde você deve ir, mesmo que você não esteja muito certo de que queira perseguir aquele circuito de montagem… Não é sem razão que uma parcela significativa destas corporações sejam geridas por pastores-engenheiros (ou seria engenheiros-pastores?).
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O segundo está ligado ao intenso ativismo religioso. Para muitos líderes, igreja viva é aquela que tem uma extensa agenda de atividades. Esta espiral religiosa impede que as pessoas aprofundem relacionamentos, expandam a consciência crítica pela leitura, cortem a dependência pastoral para lerem a realidade. Isso porque, uma vez que os encontros eclesiásticos são formais e visam atender uma demanda, uma atividade, eles inviabilizam a construção de relacionamentos com pessoas que não são religiosas. Usando uma expressão do Pr. Caio Fábio, o sal fica sempre restrito ao saleiro. Este excesso de sal na panela das relações eclesiásticas é que tem criado desequilíbrio homeostático em muitas igrejas.
O ativismo gera outro problema: ele posterga desenlaces nada agradáveis. O pouco espaço/tempo para convivência familiar cria um ambiente de estranhamento no lar: com o passar dos anos, os cônjuges passam a se desconhecer. Questões que precisavam ser resolvidas são congeladas em nome da falta de tempo, como se nunca viesse a chegar o tempo do degelo… O divórcio que assusta a comunidade de fé não aconteceu “agora, agorinha” como alguns querem sustentar. Na verdade ele ocorreu há anos, sendo coberto pela manta do ativismo religioso. Nada nesse mundo deveria tirar o prazer de vivenciar o ócio em família, de se embevecer com o corriqueiro que está presente no curso da vida.
Outro envelopamento é o do acréscimo salvífico. Há muita gente pensando que a eternidade com Deus é prerrogativa capitalista. Esquecem-se, estes, de que Deus rompeu com toda forma meritória (conceito basilar para o capitalismo justificar a diferença entre classes – o outro é o da eleição) quando concedeu sua Graça aos seres humanos. Paulo, apóstolo, nos lembra que é pela Graça que somos salvos, e não por obras, pelo mérito pessoal (Efésios 2:8-9). O mesmo Paulo está coberto de razão ao nos lembrar que toda forma do que temos chamado aqui de “envelopamento” representa um cair da Graça de Deus (Gálatas. 5:4b).
PublicidadeO problema maior do envelopamento é sua dupla remissão: a da forma, pois se ajusta perfeitamente ao objeto, ao conceito; ao arquétipo bíblico, pois lembra uma prática ritual que simbolizava um ato de fé, que era a circuncisão. Ora, nem tudo que tem forma (delineadora ou não) do Evangelho é Evangelho. De igual modo envelopar a Graça de Deus é reimplantar o que já foi tirado pelo Espírito (Colossenses 2:11; Romanos 2:29; Filipenses 3:2-3).
Finalizo dizendo que não tenho como avaliar os benefícios do envelopamento para um carro. Agora, no tocante ao Evangelho, tudo que o torna fosco, acaba atrapalhando. O Evangelho nasceu translúcido. Os evangélicos deveríamos mantê-lo assim.
* Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é pastor batista e doutor em Ciência da Religião (UFJF-MG).
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