As manifestações bolsonaristas em rodovias e em frente a quarteis pedindo a subversão do processo democrático dão margem a muitas questões. A partir do meu ponto de vista de servidor público, o que choca é a satisfação com o governo de Bolsonaro, um governo que vem destruindo boa parte das políticas públicas desde seu início. Como pode haver satisfação com um governo que deteriorou em um crescendo a prestação de serviços públicos, as atividades do estado? Qual a razão disso? E como lidar com esse problema?
Na política externa o Brasil tornou-se pária internacional devido a sua (anti)política ambiental e escolhas ideológicas extremas. Nas áreas de educação e saúde, afora os problemas de subfinanciamento, o governo federal desarticulou as relações com Estados e Municípios, o que é imprescindível quando se pensa em sistemas de prestação de serviços públicos. Além disso careceu também de boas políticas específicas para essas áreas. O que foram, por exemplo, a total ausência de preocupação com a evasão e a perda de aprendizado causado pela pandemia assim como o descaso com a vacinação contra a covid e em sua esteira outras políticas vacinais? Nesse pacote de desarticulação dos entes federativos promovidos por Brasília, podemos também colocar a política de segurança pública.
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Quando falamos de meio ambiente, além do reiterado comportamento de desqualificar e desestruturar as ações do estado – vide deterioração da fiscalização – avulta o alheamento da sociedade civil. Quando inúmeras organizações nacionais e internacionais, além de governos estrangeiros, movem-se para ajudar a preservar o meio-ambiente, o governo Bolsonaro desmonta essa rede de relações. As ações de direitos humanos também podem ser colocadas na lista de políticas que foram invertidas para se tornarem de fato antipolíticas.
Ainda, o que falar da ciência e tecnologia que assistiram à destruição de seus orçamentos? Como colocar o Brasil em marcha para o futuro sem investir em conhecimento?
Bem, como disse, a partir da visada de servidor público choca ver o movimento bolsonarista satisfeito com o governo que agora termina. As perguntas que então se colocam são a razão da satisfação e como lidar com isso.
Sobre a razão da satisfação, o primeiro ponto é que há sim uma pauta bolsonarista que avançou. Fragmentária e pontual, fez acenos ao homeschooling, incentivou a pauta do estado de natureza armamentista, deu voz a descontentamentos difusos que encontraram foco no combate ao “sistema”.
Contudo, mais importante que a pauta fragmentária que “realizou algo”, creio que boa parte da satisfação com Bolsonaro vem daquilo que a Ciência Política tem tratado como “representação simbólica”. Pelo simples fato de existir Bolsonaro representa uma crítica ao mundo em que vivemos – crítica desarticulada, mas potente – e o faz com base, em boa medida, nos “valores tradicionais”. Dito de outra forma, pela sua simples existência e ação cotidiana Bolsonaro diz que a sociedade vai mal e que há valores que precisam ser recuperados para nossa salvação. Quando assisto às infinitas imagens de alheamento à realidade em frente a quarteis e nas rodovias convenço-me que essa representação simbólica dá conta realmente bem do fenômeno que vivemos.
Então, resta-nos perguntar como lidar com isso. De fato, não lidar com o bolsonarismo de forma série e consequente criará uma bomba de energia social prestes a explodir sob qualquer pretexto. Tal energia vagará em busca de um líder que, se Bolsonaro não continuar na condução do movimento, logo se apresentará sob uma face nova.
Mais empregos e melhores serviços públicos desmontarão essa energia questionadora do bolsonarismo? Afora a dificuldade de produzir mais empregos e melhores serviços públicos, o que já é muito, parece-me que a resposta é não: a pauta bolsonarista corre o risco de seguir intocada e o movimento com o dedo no gatilho pronto para disparar.
Assim, imagino que ações precisam ser realizadas também em outro mundo, no campo do simbólico, por meio do posicionamento do futuro presidente Lula, de seu vice Geraldo Alckmin e demais autoridades políticas que tenham lastro comunicacional. Da mesma forma, a administração federal precisa entender a questão.
Em primeiro lugar creio que agressões verbais ao movimento e seus participantes não colaboram com a melhoria do quadro; ao contrário, fazem o jogo da baderna e da violência que viabilizou toda a espiral de contestação ao sistema, às eleições e no fundo à democracia.
Uma questão central é como lidar com a pauta progressista nos costumes. Direitos da comunidade LGBTQIA+ precisam avançar, o combate ao racismo, à misoginia e ao machismo precisam se intensificar. Assim, será que há uma equação de acomodação entre o futuro de uma sociedade plural – um caminho que me parece inescapável e positivo – e a perplexidade do bolsonarismo diante de um mundo em mudança?
Eu mentiria se afirmasse ter a resposta. Contudo, parece-me que tudo começa com uma comunicação clara, respeitosa e que chame ao diálogo – embora firme em seu propósito progressista. Refiro-me aqui a todo o conjunto da sociedade que hoje vê positivamente o bolsonarismo, não necessariamente seus líderes políticos que ganham com a exacerbação do confronto e do conflito.
A todo custo deve-se evitar a luta do “bem contra o mal” e do “nós contra eles”. Em um momento em que um dos lados da sociedade brasileira apela para a força dos quarteis, mostra-se como única saída a promessa da política – a resolução de conflitos por via pacífica –, e sua ferramenta é o diálogo.
O futuro governo terá os cargos, o orçamento e a visibilidade internacional para avançar novas pautas – claro que com as dificuldades naturais de um governo. Mas no campo do simbólico, da desmontagem do bolsonarismo perigoso e danoso à democracia, precisa ser generoso e inteligente para criar espaços de diálogo e pacificação social. O desafio é do tamanho da Política com p maiúsculo, mas essa é nossa única solução e exclusivo caminho para um futuro civilizado.
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