Chego eu ao estabelecimento comercial (longe de ser uma livraria), indicado pelo novo colégio de minha filha para comprar os livros didáticos que farão parte do seu aprendizado escolar em 2025 e, para além da lista dos livros “formais” das disciplinas do sétimo ano do ensino fundamental, me deparo com a exigência para a aquisição de um “tal” exemplar de ensino religioso.
Franzo a cara e vislumbro que terei “problemas” à vista, tanto para explicar a meus dogmas mais profundos e alicerçados na crença (a palavra em si já me soa paradoxal) que o ensino deve ser laico tal qual o Estado – seja ele político ou “das coisas” – quanto para o pai de minha filha que ateu se denomina ou denominava (já estou na dúvida). Que “história é essa” de ensinar religião na nova escola?
Faço uma pausa neste texto para uma breve contextualização do quanto foi difícil avaliar a possibilidade e depois acabar por escolher uma escola que se apresenta como confessional, porém não doutrinadora, para ser a nova escola de minha filha no próximo ano. Pois bem…é preciso dizer que na lista de não concessões que fazemos ainda quando estamos a gerar um filho, estava lá cravado em letras garrafais, que jamais minha filha estudaria em escolas religiosas ou militares.
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Por óbvio aqui acho que já expliquei, mas é preciso deixar ainda mais evidente, que em escola religiosa ela “não estudaria” pois a laicidade é democrática e a escolha de uma determinada religião é algo individual e portanto, deve ser respeitada. Sendo assim, ela livre está para escolher o credo que desejar ou a “falta de fé”, se assim bem lhe entender.
Quanto a colégios militares: serei breve, porém não menos enfática! Minha filha jamais estudaria em um deles, já que, como neta de alguém que foi preso por militares e assim permaneceu nos anos de 71 e 72, encarcerado por “atos subversivos”, não haveria de ser “doutrinada” por escolas que certamente chamam de revolução um golpe militar que durou mais de 20 anos e que vitimou e continua vitimando (haja vista o “novo golpe” em curso depois da última eleição presidencial) brasileiros e brasileiras nesse país com “lapsos de caráter” em forma de esquecimento de fatos históricos.
Retorno então ao “curso” deste meu texto…Peço a gentil atendente do estabelecimento comercial que me mostre o livro de ensino religioso para que possa ao menos folheá-lo antes de adquiri-lo. Mas já com a certeza inabalável que fiz uma “escolha errada” para a escola de minha filha. A moça então me traz o livro com muita prontidão e sugere que eu o leia com atenção. Na capa lá está: Caminhar Juntos – Ensino Religioso – Autor: Humberto Herrera. Abro e, na contracapa, um pequeno currículo do autor e alguns títulos sobre ele já começam a “aliviar” meu coração: doutor em Educação, graduado em Filosofia e membro da Sociedade Brasileira de Cientistas Católicos. Bom saber, Humberto!
Avanço, e no primeiro capítulo, intitulado Símbolos Religiosos, uma foto lindíssima mostra uma senhora negra, participante da Congada, ao lado de uma bandeira na festa de Nossa Senhora do Rosário. Em tempo: a Congada é um rito milenar da África e foi introduzido no Brasil durante a escravidão. Ela homenageia antepassados, reis, divindades e anciãos africanos.
Na página ao lado, me chama atenção a forma como o grafite enquanto simbolismo do nosso cotidiano é retratado: “símbolos e seus significados variam de uma cultura para outra”. Empolgada, sigo ávida por mais “conhecimento religioso” e na página 14, ainda o grafite, desta vez de Bansky, um dos “artistas de rua” mais fantásticos do planeta é evidenciado. O livro diz: “As obras desse artista ganharam repercussão e reconhecimento mundial por expressar em muros e paredes, mensagens de crítica social, cultural e política”. Em seguida, a proposta para o estudante debater com o professor em sala os possíveis significados da obra de Bansky “Grafite é um crime”.
Depois deste “pequeno começo”, só posso dizer que me apaixonei ao primeiro folhear e tudo neste livro foi um oásis de esperança, alegria e crença de que há espaço para o verdadeiro sentido de se escolher um caminho bonito de religiosidade e fé ou até a sua ausência.
Continuo, e na sessão Atitudes de Paz, figuram personalidades das mais diversas como Tarsila do Amaral e seu quadro Operários com a seguinte mensagem: “Nesta unidade, vimos textos e também pessoas que, por meio de ações e obras repletas de significados, promovem a paz, a justiça social e a inclusão”. Saúdo então, dentro de mim, a felicidade que é ver num livro que se “confessa” de ensino religioso, a importância que a palavra inclusão tem em suas páginas. Folheio mais e mais, me encantando com uma sessão de gravuras vibrantes dos orixás que apresenta “o terreiro como lugar sagrado do Candomblé”.
Sinto que as páginas deste livro escolhem cuidadosamente palavras amorosas e fraternas que provocam em mim uma mistura de paz e entusiasmo e que já não podem ser descritas neste texto. E passo a agradecer a Humberto Herrera e a nova escola de minha filha pela escolha do livro dele.
Vou “adelante” e no capítulo Falar com Deus, mansamente leio a canção de Gilberto Gil – Se eu quiser falar com Deus. Que lindeza, que lindeza! Me dou conta que esqueci de lembrar que “se eu quiser falar com Deus tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus” para me despir dos meus preconceitos internos e compreender que conceitos como solidariedade, pluralidade, inclusão, afetividade, empatia e não violência podem sim ser ensinados por uma disciplina chamada “ensino religioso”.
E vejam vocês que ainda, no mesmo capítulo, com extrema ternura, se faz um link do título “Falar com Deus” com a dificuldade de comunicação e compreensão enfrentada por pessoas com TEA (Transtorno de Espectro Autist)a. Logo em seguida, a sugestão para que se assista à animação “Mary e Max: uma amizade diferente”, que fala de uma menina solitária que não recebe atenção de seus pais e passa a se comunicar com Max, que tem Síndrome de Asperger.
Continuo, e no capítulo O Sagrado Na Natureza a força das comunidades indígenas é representada na figura de Davi Kopenawa, xamã yanomami e ativista dos direitos dos povos originários deste país. Está por lá também, nossa ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara. Vou em frente, e no capítulo O Sagrado nos Alimentos surge o “meu” acarajé. Axé, Axé!
Eu ficaria versando sobre este livro e suas mais lindas intenções, descrevendo em linhas cheias de admiração – pois nos exemplos de líderes religiosos ou não, e personalidades que promovem a cultura da paz, lá estão padre Júlio Lancelotti, Chico Xavier, Bell Hooks, Martin Luther King, Malala, Paulo Freire, Mujica, Mandela, Chico Mendes e Maria da Penha – mas tenho que terminar este artigo…
Findo por descrever o último capítulo da obra do professor Humberto Herrera que recomenda “O Diálogo Entre As Religiões” e faz uma importante provocação nestes tempos tão “polarizados”: você acredita que seja possível discordar de uma pessoa sem que essa discordância se torne desentendimento ou briga? E ele brinca: “Dialogar é uma arte!”
E assim, o livro Caminhar Juntos, de Humberto Herrera, doutrinou meu “cético”, embora fervoroso coração. Que assim também seja com todos vocês: Amém, Aleluia, Saravá, Gasshô, Shalom, Kolofé, ÀseAwere…
*Ana Paula Barreto é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-graduada em Comunicação Legislativa pela Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis). Foi assessora de comunicação do Senado Federal e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e chefe de comunicação da Secretaria das Relações Institucionais da Presidência da República.
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